O triunfo dos filhos da « banlieue »

O triunfo dos filhos do subúrbio. Os franceses voltam a viver com os mesmos sonhos de vitória que em 1998, quando a sua equipa se sagrou campeã do Mundo. E esperam também que a sua nova estrela Kylian Mbappé, vindo, tal como muitos outros jogadores da seleção, das duras e marginalizadas periferias das grandes cidades, contribua para acalmar a violência que as continuou a marcar apesar da vitória da equipa de Zidane, há 20 anos

Alfa/Expresso, por Daniel Ribeiro

As esperanças são as mesmas de há 20 anos. São altas no campo desportivo, mas são muito mais moderadas do que em 1998, no domínio da correção das fraturas sociais e da convivência saudável entre diversas comunidades que muito raramente se cruzam.

O troféu conquistado nessa altura foi então visto por alguns analistas como a salvação ou, pelo menos, como o ponto de partida para alcançar finalmente a paz na conflituosa sociedade francesa.

Há duas décadas, a equipa era, em termos de origem social dos jogadores, idêntica à atual – uma mistura de jovens vindos de diversos horizontes, muitos deles da emigração africana e dos guetos pobres e marginais que abundam à volta das grandes cidades. Era a imagem da ansiada harmonia que se desejava implantar e transferir quase automaticamente para a sociedade.

Mas o convívio entre estas duas franças durou apenas os dias das comemorações da vitória e, depois, nada se alterou no dia a dia da vida real das pessoas. A violência e a fratura social mantiveram-se e até aumentaram. A xenófoba Frente Nacional alcançou, depois de 1998, os seus melhores resultados eleitorais de sempre e as duas franças continuaram irremediavelmente de costas voltadas.

Ainda hoje o drama permanece bem vivo. Enquanto a seleção marcava golos na Rússia e Kylian Mbappé, um filho de Bondy, na “banlieue” norte de Paris, dava nas vistas e começava a ser apontado como uma provável futura estrela do futebol francês e mundial, na precária periferia da cidade de Nantes viveram-se cinco noites consecutivas de grande violência, com incêndios e confrontos, depois de um jovem de 22 anos ter sido abatido a tiro por um polícia durante um banal controlo de um carro numa rua.

O VIVEIRO

Na atual equipa tricolor abundam jogadores nascidos nos subúrbios e que cresceram profissionalmente sobretudo nos da capital, Paris. Alguns são muito conhecidos e já fazem parte da elite do futebol. Têm nomes afirmados nos terrenos dos jogos, como é o caso, além de Mbappé, de Blaise Matuidi, N’Golo Kanté, Paul Pogba ou Presnel Kimpembe. No total, no grupo selecionado por Didier Deschamps, eles representam mais de um terço do total.

As periferias, essencialmente as parisenses, são autênticos viveiros para o futebol francês. Nestes deserdados e discriminados subúrbios há muito pouco para fazer, há elevadíssimas taxas de desemprego jovem, a ascensão social não opera como no resto do país, a escola funciona mal e, para que os seus filhos não caiam definitivamente na marginalidade e no banditismo, os pais empurram-nos desde miúdos para a prática do futebol.

Em Montfermeil, Bondy ou La Courneuve, localidades da região parisiense, as crianças jogam futebol entre as degradadas torres de habitação e basta uma curta visita aos guetos num dia sem chuva para o constatar. Todos os miúdos querem ser futuros Zidanes ou Mbappés e o futebol passou ser quase a única perspetiva para sair da vida dura na “banlieue”. Jogam em campos improvisados, dirigidos por treinadores amadores ou pelos próprios pais.

Nos últimos anos, as suas hipóteses de subirem na vida através do desporto-rei aumentaram. No tempo da seleção de Michel Platini, há mais de 30 anos, ainda existiam poucos internacionais vindos da periferia de Paris na equipa nacional. Mas, desde há pouco mais de 20 anos, as equipas profissionais contrataram « olheiros » para detetar novos talentos e eles têm aparecido.

“Atualmente, mais de 60 por cento dos jogadores profissionais franceses vêm da região parisiense”, explica Jean-Claude Lafargue, diretor de um centro de formação em Clairefontaine (campo de base da seleção francesa), que treinou Mbappé quando ele era ainda uma criança. “Os jovens das periferias de Paris são muito motivados pelo futebol e os clubes profissionais montaram redes de recrutamento eficazes em toda a região”, acrescenta Jamel Sandjak, presidente da Liga de Paris-Ile-de-France.

Em França, os jovens das periferias são discriminados em tudo, menos no futebol. Não conseguem empregos facilmente, porque são suspeitos de estarem irremediavelmente contaminados pela violência e, até, pelo radicalismo islâmico. O futebol é, muitas vezes, a única porta de saída para muitos.

Se, esta noite, os tricolores ganharem à Bélgica, estes jovens vão celebrar de novo a vitória e a esperança de terem uma vida mais feliz. Mas a fratura é imensa e há muitos outros que não o farão. Já durante o Euro de 2016 muitos deles celebraram a vitória de… Portugal, porque, disseram então alguns a este repórter, “não gostamos da França”.

Na vida não há apenas uma cor e a realidade francesa tem pouco a ver com os sonhos. O futebol é uma esperança para as gentes das “banlieues”, mas a árvore Mbappé não consegue esconder a floresta.

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