A sua voz conquistou a eternidade. Morreu Aretha Franklin

“A história dignifica-se quando ela canta”: Aretha Franklin 1942-2018

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Uma canção que era um grito de luta pela igualdade de género e um hino pelo respeito e pela liberdade granjeou-lhe em meados dos anos 60 o respeito que a tornaria na rainha da música soul. Depois de 48 álbuns, milhares de espetáculos, vários filmes e uma extensa lista de prémios e distinções, despediu-se dos palcos e da carreira no ano passado. Depois de notícias que a davam como gravemente doente, morreu esta quinta-feira, aos 76 anos. Mas fica uma certeza sobre Aretha: o silêncio não se vai instalar.

Texto de Nuno Galopim

Ao contrário das monarquias, em que os títulos são hereditários, os reis e rainhas na música surgem como fruto de talento e muito trabalho. Aretha Franklin é reconhecida como a “rainha da soul” desde finais da década de 60. Mas curiosamente podemos reconhecer um episódio ao jeito do velho ditado “rei morto, rei posto” no momento em que Aretha deu voz a um original de 1965 de Otis Redding, editando a canção no formato de single em abril de 1967, meses antes da morte do seu autor.

Foi como se lhe tomasse o cetro: a força e o rasgo interpretativo transformaram a canção num grito de luta pela igualdade de género, num hino pelo respeito e pela liberdade. “Respect” deu-lhe o primeiro número um na mais importante tabela de R&B e tornou-se a canção-assinatura de Aretha Franklin, elevando o seu estatuto a um patamar de reconhecimento internacional que, apesar das sucessivas novas gerações de vozes, em nada beliscou o título então conquistado.

NO PRINCÍPIO ERA O GOSPEL

Como muitas outras figuras da geração que deu voz à música soul, Aretha Franklin deu os primeiros passos profissionais em terreno gospel. Nascida em Memphis, no Tennessee, em 1942, Aretha é filha de um pastor itinerante e de uma cantora que também tocava piano. Cresceu entre hinos e, depois da morte da mãe, entre as figuras presentes no espaço de vida familiar estiveram Mahalia Jackson, Marion Williams ou Carla Ward, grandes vozes do gospel que dividiram, com a avó e outras amigas, a tarefa de zelar pela pequena Aretha e suas irmãs.

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Não foi por isso surpreendente que, depois de notada e elogiada, a sua estreia em disco (em 1956) se tenha feito no espaço do gospel. Esse não era contudo o seu sonho. E cedo confessara ao pai que, com Sam Cooke como referência, o seu grande desejo era o de poder cantar canções mais… pop.

A transição não foi imediata. Tanto que, em 1957, seria Ruth Brown a primeira voz a gravar um álbum R&B já capaz de expressar mudanças que traduziam os efeitos de uma revolução em curso na cultura juvenil de então. Em 1961, Aretha Franklin grava “Aretha” (com o Ray Bryant Combo), o seu primeiro álbum de música não religiosa. Ano após ano foi lançando singles e álbuns que a levaram a experimentar várias formas e géneros, das mutações que se viviam no R&B a terrenos mais próximos do jazz.

A escola gospel e uma rara amplitude vocal permitiam-lhe expressar personalidade no canto. E disco após disco, atuação após atuação, o reconhecimento e popularidade foram-se cimentando. Em meados da década, Aretha aprofundou a desejada relação com o formato da canção pop e, em 1967, “Respect” assinalou finalmente a definitiva conquista do velho sonho.

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Datam da reta final dos anos 60 e da década de 70 os seus discos de maior impacto. A sobrevivência do título “rainha da soul” é assegurada depois, já em plena década de 80, quando sente que é chegada a hora de cativar uma nova geração de ouvintes. Colaborações com os Eurythmics (no hino “Sisters Are Doing it For Themselves”) ou George Michael (com quem partilha o single “I Knew You Were Waiting For Me”), uma versão do clássico dos Rolling Stones “Jumpin’ Jack Flash” (para a banda sonora do filme com o mesmo título protagonizado por Whoopi Goldberg) e ainda o impacto do álbum com sonoridade mais contemporânea que apresenta em “Who’s Zomin’ Who” (1985) garantem o efeito desejado. Veterana, respeitada entre músicos, admirada por diversos públicos, Aretha manteve desde então o estatuto, mesmo não tendo voltado a criar um disco de dimensão icónica.

Aretha Franklin em dezembro de 2015

Aretha Franklin em dezembro de 2015

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A fragilidade da saúde obrigou-a nos últimos anos a reduzir a agenda de trabalhos. Em 2014 gravou “Aretha Sings The Diva Classics”, o seu 41º álbum de estúdio, no qual abordou alguns clássicos a que grandes cantoras deram voz. Depois deste disco, a sua obra somou em 2017 mais um título, “A Brand New Me”, que na verdade não é mais do que um trabalho de estúdio criado sobre gravações de arquivo. Nesse mesmo ano anunciou que iria retirar-se. E assim foi, tendo pisado pela última vez o palco em Filadélfia em agosto do ano passado.

ELOGIO DE OBAMA

“A história americana dignifica-se quando Aretha canta”, disse uma vez Barack Obama, em cuja cerimónia de tomada de posse a rainha da soul cantou. As palavras do ex-presidente soaram quando, em 2015, Aretha Franklin foi homenageada no Kennedy Center. Homenagem que, como tantas outras, destacaram não apenas a grande figura da música soul, mas também a lutadora pelos direitos civis, a voz da América negra (como chegou a ser descrita).

Quarenta e dois álbuns de estúdio, seis outros gravados ao vivo, mais de 130 singles (dos quais 20 ocuparam o número um da tabela de R&B da Billboard), uma lista extensa de nomeações e de prémios obtidos, são alguns números a ter em conta numa história que continuará a ser contada agora que nos deixou.

Há um biopic a caminho, que tem o mítico editor Clive Davis como produtor. Um megaconcerto de homenagem está agendado para 14 de novembro no Madison Square Garden, no qual estarão em palco nomes como os de Paul McCartney, Stevie Wonder, Paul Simon ou Elton John. Na agenda de trabalhos, Aretha tinha ainda um último disco em vista, com Stevie Wonder como produtor… Terá chegado a ser gravado?

O certo é que entre discos, filmes e concertos, o silêncio não se vai instalar. Aretha ainda está entre nós. Mas a sua voz já  conquistou a eternidade.

 

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