Reportagem/LUSA.
Thiago Kalisvaart vem de uma família holandesa que navegou durante gerações, seguiu a tradição e lançou-se à água. Mas não navega os mares. Iça as suas velas no Alqueva, o maior lago artificial da Europa ocidental.
Criado para revitalizar uma das zonas mais empobrecidas da Península Ibérica, o Alqueva tornou-se num polo turístico virado para o desenvolvimento sustentável desta região partilhada entre Espanha e Portugal.
Ao todo são mais de 250 quilómetros quadrados e 13 municípios de ambos os lados da fronteira que se alimentam das águas do rio Guadiana.
A sua criação, em 2002, alterou a fisionomia – e a vida – do Alentejo e das localidades do lado espanhol (província de Badajoz).
« O grande lago », como também é conhecido em Portugal, tem uma capacidade de armazenamento superior a 4.100 hectómetros cúbicos – suficientes para cobrir a procura de água de Lisboa durante 40 anos – e uma extensão de costa de 1.100 quilómetros, equivalente a todo o litoral marítimo português.
As suas águas, que impulsionaram a agricultura e a geração de energia, são também agora o epicentro do crescimento de um turismo sustentável que pode travar o ritmo do despovoamento que castiga esta faixa ibérica.
No Alqueva multiplicam-se os projetos turísticos e as atividades de promoção do meio ambiente apoiados pelos fundos FEDER da União Europeia, através do Programa de Cooperação Transfronteiriça Interreg V-A Espanha-Portugal (POCTEP) 2014-2020, com um orçamento global superior a 3,1 milhões de euros.
Segundo o presidente da Câmara de Reguengos de Monsaraz e da ATLAS (Associação Transfronteiriça do Lago Alqueva), José Calixto, « está a conseguir-se recuperar o turismo em Monsaraz”.
Nos últimos anos, a localidade de 100 habitantes recebeu 100.000 visitantes e a praia de Monsaraz recebeu cerca de 80.000 banhistas, indicou o autarca.
Às atividades associadas ao lago, como a navegação, o esqui aquático, a canoagem ou o paddle-surf, junta-se a oferta de passeios, observação de aves e voos.
Os castelos medievais dos municípios que rodeiam o lago, o seu património histórico, a sua gastronomia e os seus vinhos, que converteram Monsaraz no « berço do vinho de Portugal », foram outras atrações enumeradas por José Calixto.
Mas a oferta não estaria completa, admitiu, sem « um conjunto de eventos de caráter transfronteiriço que são hoje pontos de atração, tanto do lado de Espanha como do lado de Portugal », que inclui desde percursos históricos até festivais de fado e flamenco.
Do lado espanhol, também o autarca de Alconchel está empenhado em aumentar o fluxo de turistas naquela localidade da Extremadura próxima da fronteira.
O castelo que coroa a cidade recebe anualmente milhares de visitantes, mas Óscar Díaz trabalha para promover também a oferta hoteleira e gastronómica.
O objetivo comum é impulsionar o desenvolvimento e travar a saída de jovens da região.
Pelas mãos do lago multiplicam-se as oportunidades para fixar a população ao território: « Há dez anos muitas das empresas que existem agora não existiam e não se faziam as atividades que se fazem agora », lembra José Antonio Carrasco, coordenador da Alcor Extremadura, uma das empresas de atividades na margem espanhola do lago.
As irmãs María José e Rosa María de la Montaña chegam esgotadas ao porto de Olivença, sobre o lago do Alqueva, após horas a remar na sua canoa.
« Foi uma experiência muito boa, muito emocionante. Custou um pouco, mas conseguimos », afirmaram.
A corrida onde participaram, patrocinada pelo Governo da Extremadura, atraiu centenas de adeptos e terminou com uma paelha típica. É uma das muitas alternativas que o Alqueva oferece.
José Antonio Carrasco frisou que, se se considerarem « os mais de 80 quilómetros que há da cabeça à cauda [do Alqueva], pode assumir-se que uma lâmina de água tão grande gera oportunidades de fazer muitíssimas coisas ».
« Se a isto unimos o que já havia da parte cultural e histórica de cidades emblemáticas como Alconchel ou Olivença, no lado espanhol, e localidades no outro lado, como Monsaraz ou Évora… Juntamos água, possibilidades de lazer, cultura e tradições em todo este território e este atrativo de vir a esta região e conhecer uma zona nova coberta de água. É estupendo », afirmou.
No entanto, o autarca português José Calixto lamentou a burocracia que afeta a navegação no Alqueva.
A linha imaginária que separa Espanha e Portugal, em pleno lago, atua como uma fronteira na água que não existe em terra. O problema, detalha o presidente da ATLAS, está nos diferentes requisitos para a navegação vigentes nos dois países, um obstáculo que afeta diretamente o turismo e que « é mau para ambos os lados ».
Em Espanha, a navegação em água doce está sujeita a taxas e impostos, enquanto em Portugal, no caso do Alqueva, não há taxas.
Por isso, os navios portugueses que cruzam o lago devem apresentar o pagamento correspondente para entrar em águas espanholas. Caso não o façam, arriscam-se a serem multados. Em resposta, também as embarcações espanholas podem encontrar impedimentos do lado luso.
Na prática, isto leva a que as embarcações de uma e outra margem prefiram não passar a linha fronteiriça.
Os autarcas de ambos os lados defendem que as autoridades devem tomar medidas urgentes porque “há muito em jogo”.
« É um tema que não interessa a nenhum dos lados da fronteira. É um tema que a associação enviou aos governos porque nos preocupa que nestes dias não haja total circulação de embarcações no lago do Alqueva », frisou Calixto.
Antonio Carrasco sugeriu que seja criada “uma só licença de navegação” para se circular no Alqueva.
« É preciso conseguir que seja um só lado, nem espanhol nem português, mas o lago do Alqueva, e que tudo represente a união destes dois países, que não estejamos a falar de Espanha e Portugal », disse.
Os profissionais de ambos os lados da fronteira já sabem onde parar, mas a barreira imaginária pode causar problemas a algum marinheiro amador que se aventure, por exemplo, a conduzir barcos-casa, outro projeto turístico com financiamento europeu.
« O mercado turístico não se faz com barreiras, obviamente », afirmou Calixto.
A oferta turística que surgiu nos últimos anos no Alqueva transformou o perfil do visitante que, « há 7 ou 8 anos, ficava um dia ou uma noite, mas agora as pessoas ficam até duas semanas », explicou Kalisvaart.
Navegar é, sem dúvida, uma das melhores formas de desfrutar do Alqueva. Parar nas suas ilhas, passear entre oliveiras à beira da água e é essa a proposta de Thiago Kaliwsvaart, a bordo de um velho cargueiro holandês, de 1930.
A sua compra foi uma ideia familiar. O seu pai, holandês, radicou-se na região nos anos 70 « e esperou que o lago enchesse para navegar nele ».
« O nosso amor é a vela, o vento, e estávamos à espera de um barco grande para estas águas », afirmou, destacando que, além de antigo, o seu barco, é de ferro, pelo que « não sofre tanto com o calor como a madeira », e o seu fundo é liso, podendo « atracar onde se quiser, como se fosse um embarcadouro ».
Uma grande vantagem quando se fala de navegar no Alqueva, pois grande parte da área portuguesa conserva debaixo da água os fundos intactos, com vegetação e, em alguns casos, até com o resto de velhas casas que ocupavam a zona.
Thiago admite que o lago mudou muito nos últimos anos, mas está protegido porque a legislação é muito estrita: « Não deixam construir nas margens. Está muito bem cuidado. É uma água potável e queremos utilizá-la para beber ».
Acabado de terminar um dos seus passeios turísticos pelo lago, Thiago amarra o seu velho cargueiro no cais do porto desportivo de Reguengos. Faz vento e foi difícil fazer as velas recuar, mas valeu a pena.
« A água é vida. Com água pode-se fazer de tudo ». Palavra de marinheiro.