As favelas do estado brasileiro do Rio de Janeiro não estão preparadas para enfrentar o novo coronavírus, que, sem água canalizada ou condições de habitação para isolamento, serão as maiores vítimas desta pandemia, alertou à Lusa um dos moradores.
Com os primeiros casos suspeitos de coronavírus a pesarem sobre a já estereotipada favela da Cidade de Deus, Jota Marques, morador e conselheiro tutelar daquele bairro, assegura que as autoridades governamentais não estão a fazer o devido planeamento que essas comunidades necessitam.
« A chegada do vírus nas favelas deveria ser alvo de um planeamento estruturado por parte da prefeitura e dos Governos estadual e federal porque, se tudo nos falta, a tendência é que isto se alastre de forma a que o controlo, que as entidades governamentais estão a tentar manter, seja perdido », indicou Jota Marques.
Os problemas enumerados pelo morador são vários. Contudo, a falta de água canalizada está em primeiro lugar. Sem ela, os mínimos da higiene básica, como uma eficaz lavagem de mãos, estão postos em causa.
« O nosso grande temor, pensando nas periferias do Brasil, é a falta de saneamento básico, que vai prejudicar não apenas a prática de prevenção, mas também prejudicar na hora de diminuir o contágio. Por exemplo, aqui, na região da Cidade de Deus, não há água canalizada. Como é que os moradores não infetados poderão fazer a sua higiene pessoal, e como é que os infetados se vão cuidar neste processo? » – questionou.
À falta de água canalizada, junta-se a crise de água potável que desde o início do ano afeta o Rio de Janeiro, e que levou os moradores a exigirem uma solução para o problema do mau sabor, cheiro forte e coloração incomum do liquido que sai da torneira das casas em dezenas de bairros.
A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) chegou a interromper o funcionamento de uma estação de tratamento de água que serve nove milhões de pessoas após a deteção de detergente.
« Fica muito difícil cumprir as indicações do Ministério da Saúde, de lavar muito bem as mãos. Vivemos um momento de pandemia logo após uma crise da CEDAE, que fornece uma água suja e que ainda não inspira confiança », frisou Jota Marques.
A favela da Cidade de Deus, que ganhou fama mundial após um filme como o mesmo nome, está localizada zona oeste do município do Rio de Janeiro. Foi, por muito tempo, considerado uma das regiões mais perigosas da cidade, devido a constantes confrontos de narcotraficantes na região.
Contudo, nem a fama obtida com o filme, nem a visita, em 2011, do ex-presidente norte-americano Barack Obama, alterou a situação socioeconómica da Cidade de Deus, que, com uma população em torno de 38 mil habitantes, continua a apresentar alguns dos indicadores mais críticos da região.
Por estar geograficamente perto de alguns dos bairros mais nobres do Rio de Janeiro, como Barra da Tijuca, Recreio e Freguesia, essas localidades acabam por empregar grande parte dos moradores da Cidade Deus. Mas isso, segundo Jota Marques, tornou-se um problema na conjuntura atual, porque alguns desses bairros apresentam grande número de infetados pelo coronavírus.
« A população da Cidade de Deus é extremamente pobre, muitos não tem contrato de trabalho e só conseguem alguns « biscates ». É uma população que nem sequer pode ficar no período de quarentena, pois precisa de trabalhar, ou encontrar algum tipo de sustento », declarou Marques que, por ser morador daquela comunidade, conhece na primeira pessoa a realidade da região.
A cidade brasileira do Rio de Janeiro entrou na quarta-feira em estado de emergência, anunciou o presidente da Câmara, Marcelo Crivella, que recomendou à população que evite sair de casa, devido à pandemia de Covid-19.
Contudo, apesar do isolamento domiciliar ter sido recomendado, o conselheiro tutelar assegura que tal é impossível para a maioria dos moradores de favelas, que vivem em « barracos » de reduzidas dimensões.
« Impossível ficarem em isolamento. Estamos a falar de regiões onde as pessoas vivem em barracos, onde não tem como se isolar. Estamos a falar de um barraco onde, num só espaço, está a cozinha, a sala de estar e o quarto. Quase ninguém mora sozinho. Há, no mínimo, dois a três membros em cada família, a conviver num espaço que é do tamanho de um quarto de uma casa normal », descreveu Marques.
« Além disso, todos esses barracos estão prensados uns nos outros. Estamos a falar de lugares onde não há água encanada, há muita lama, muitos bichos. As pessoas não têm condições de manter essa higiene pessoal e a limpeza do lugar, necessárias neste momento », acrescentou o brasileiro, em declarações à agência Lusa.
Segundo Jota Marques, trata-se de um grupo populacional que vai estar mais exposto, e que « vai transmitir o vírus mais facilmente », em caso de infeção.
Pesa ainda a questão económica. Não havendo ainda uma solução definida para os trabalhadores sem contrato de trabalho e por conta própria, como é caso da maioria dos moradores de favelas, o conselheiro tutelar defende que este é o momento de se fortalecer a defesa de rendimentos básicos de emergência e de distribuição de recursos.
« Não é hora de olharmos formas de não perder a economia, mas sim de como cuidar das pessoas. Ainda que o comércio sobreviva, essas pessoas que fazem movimentar a economia podem não sobreviver. Não pode prevalecer a lógica do ‘salve-se o comércio, não as pessoas’. Se as pessoas não forem salvas, não vão poder consumir. É uma lógica que precisa ser invertida », advogou.
O Brasil tem 11 mortos e 904 infetados pelo novo coronavírus, informou na sexta-feira o Ministério da Saúde brasileiro, no mesmo dia em que previu para abril o colapso do sistema de Saúde do país.
Do total de mortes, nove ocorreram em São Paulo, que tem ainda 396 casos do novo coronavírus confirmados. O estado do Rio de Janeiro tem dois mortos e 109 infetados.
O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, infetou mais de 265 mil pessoas em todo o mundo, das quais mais de 11.100 morreram.
Alfa/Lusa.