Deputadas afrodescendentes apontam para “nova era” parlamentar depois da sua eleição
Na nova legislatura que agora começa, a Assembleia da República vai contar com três deputadas afrodescendentes, o que demonstra que se avizinha “uma nova era” e que as últimas eleições legislativas foram “portadoras de futuro”, consideram as eleitas.
Nas eleições legislativas de 06 de outubro, os portugueses elegeram pela primeira vez Joacine Katar Moreira, do Livre, Romualda Fernandes, do PS, e Beatriz Dias, do BE, todas elas com origens africanas e ativistas dos direitos humanos e antirracismo.
A eleita que mais usou as suas origens como bandeira eleitoral foi Joacine Katar Moreira, do Livre, que se apresentou ao eleitorado como a primeira mulher negra a encabeçar uma lista, e pretendia uma verdadeira revolução na Assembleia da República.
“O objetivo do meu partido era o de contribuir para que a Assembleia da República estivesse mais parecida com a nossa sociedade, e a nossa sociedade não é homogénea, é uma sociedade marcada pela diversidade”, disse à agência Lusa a deputada eleita, nascida na Guiné-Bissau.
Na ótica da ativista antirracismo, a entrada de três mulheres negras no parlamento português “não deve ser olhada apenas como uma conquista, mas como um instrumento fundamental”, um “momento histórico”, que poderá contribuir “para o reforço da democracia e dos ideais republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade”.
Questionada se a sua eleição pode constituir um incentivo para os mais jovens, Joacine Katar Moreira salientou o facto de “grande parte do eleitorado” do Livre ser estudante.
E assinalou: “há uma enorme consciência dos estudantes de que nós estamos a inaugurar uma nova era”.
Para essa nova fase, o Livre leva medidas “vanguardistas no que diz respeito à luta antirracista”, e bandeiras como o direito de voto para imigrantes com autorização de residência em Portugal, o aumento do salário mínimo nacional, alteração à legislação da nacionalidade, maior investimento em habitação pública, recolha de dados étnico-raciais através do recenseamento, investimento em educação, a luta contra a violência doméstica e o combate às alterações climáticas.
Pelo BE, a deputada Beatriz Dias salientou à Lusa que a luta antirracista faz “imensa” falta à sociedade portuguesa e que o principal problema é a dificuldade de “reconhecimento de que existem manifestações de racismo”.
Na ótica da parlamentar, é necessário “reconhecer que há racismo, reconhecer que este racismo decorre do que foi o projeto imperial português e de toda uma narrativa, um imaginário e toda uma propaganda que foi desenvolvida durante esse período, e combater o que ainda permanece dessa lógica de discriminação”.
Beatriz Dias reconhece também que a sua eleição é sinal de um novo momento na política: “Eu penso que sim, há transformações que contagiam. A luta que os movimentos fizeram na rua, os movimentos antirracistas, o movimento negro fez na rua, teve impacto nos partidos políticos”, assinalou.
Para a próxima legislatura, a deputada bloquista vai levar consigo “propostas legislativas muito concretas que corrijam a desigualdade, que promovam a igualdade de direitos e combatam a exclusão social”.
“Nós temos um conjunto de propostas bastante transversais, algumas na área laboral, outras na educação, na habitação, e são todas medidas que visam combater o racismo, a discriminação e promover os direitos dos negros, das negras, dos ciganos, das populações dos sujeitos racializados, mas também dos migrantes que vivem em Portugal e dos refugiados”, referiu, dando como exemplos a “inclusão da pretensa étnico-racial nos censos” 2021, a “implementação de quotas para o acesso ao emprego público” ou a “criação de um contingente especial de acesso ao ensino superior para estudantes provenientes das comunidades racializadas”.
Notando que é uma “herdeira de outros ativistas do movimento social”, Beatriz Dias vinca que o seu objetivo é “contribuir para transformar a sociedade” e inspirar os mais jovens, criando igualmente “condições para que eles tenham vidas com menos discriminação, com mais direitos, com mais possibilidades”.
Para Romualda Fernandes, do PS, este é um momento com “um sabor muito especial” por ser “o coroar de um luta” desenvolvida ao longo de duas décadas contra o racismo, discriminação e desigualdades.
Também a sua eleição tem “um sentido simbólico” pois permite o “aprofundamento da própria democracia” com uma “representatividade mais lata” da sociedade, e a deputada espera dar o exemplo aos mais novos de que “é possível chegar lá”.
“Fico feliz por estar a colher o fruto de todo este trabalho, ao mesmo tempo homenageando aqueles que também deram corpo a este processo”, sublinhou Romualda Fernandes, que nasceu na Guiné-Bissau.
Notando que “não foi preciso quotas” para terem sido eleitas três deputadas negras, a socialista assinalou que se vai bater para que “haja sensibilidade política, que haja vontade política para espelhar esta diversidade”, e vai empenhar-se igualmente para que haja “um real conhecimento da situação do racismo” e um estudo aprofundado sobre os afrodescendentes.
“Eu acredito que estas eleições são portadoras de futuro”, firmou.
Ainda assim, ressalvou que “o PS há muito que se empenha nesta tarefa, não está a iniciar-se” e que o combate ao racismo e à exclusão social, a integração de imigrantes ou a promoção de melhores condições de vida estão entre as áreas às quais vai dar maior atenção na próxima legislatura.
Entre as medidas que pretende levar à Assembleia da República, a parlamentar destaca aquelas “que permitiam uma afirmação social das minorias, o combate e prevenção de toda a segregação racial e a erradicação da discriminação em razão do sexo”, e ainda a criação de “condições para uma imigração regular” para que os migrantes que escolhem Portugal possam “realizar os seus projetos de vida”.
Esta não é a primeira vez que o parlamento português conta com deputados de origem africana. Pelo Palácio de São Bento já passou a socialista Celeste Correia (nascida em Cabo Verde) e mais recentemente o centrista Hélder Amaral, que não foi eleito nestas legislativas.
Também o socialista Fernando Ká, que foi presidente da Associação Guineense de Solidariedade Social – que fundou ao lado de Romualda Fernandes –, foi deputado e uma das caras do movimento antirracista.