Doadores para o tratamento de Matilde podem pedir o reembolso no prazo de um ano

Mais de dois milhões de euros angariados. O objetivo da angariação de fundos era o de custear aquele que era então apresentado como “o medicamento mais caro do mundo” e a viagem da bebé e dos pais aos EUA para a realização de um tratamento inovador, que entretanto acabaria por chegar a Portugal pago na totalidade pelo Estado português. Quando o dinheiro não é aplicado naquele que era o objetivo original da doação, os doadores podem exigir o reembolso do valor.

Alfa/Expresso. Por Marta Gonçalves

“Esta página é para partilhar a minha história e angariar fundos para ajudar, e quem sabe ‘salvar’ a minha vida…” Assim terminava – e ainda termina – a descrição da página “Matilde, uma bebé especial”. O objetivo da angariação de fundos era o de custear aquele que era então apresentado como “o medicamento mais caro do mundo” e a viagem da bebé e dos pais aos EUA para a realização de um tratamento inovador, que entretanto acabaria por chegar a Portugal pago na totalidade pelo Estado português. Ou seja, a família não teria de pagar o tratamento. Dizem os advogados que quem quiser reaver o dinheiro que doou porque o destino já não é mesmo que era, pode fazê-lo. Mas há um prazo de um ano.

“Neste caso, não me parece que o pressuposto inicial tenha sido cumprido. Portanto, à luz da lei, se o doador quiser, pode reaver o dinheiro doado. A doação foi feita com o intuito de pagar um medicamento para a bebé que acabou por ser pago pelo Estado”, explica ao Expresso a advogada Ana Barona. “Se eu faço uma doação há uma vontade, um pressuposto de que vou doar para algo”, acrescenta o especialista em Direito da Família e Sucessões João Perry da Câmara. “Podemos dizer que houve um erro na formulação da vontade e que formulei a minha vontade com base” numa informação errada.

Uma doação é entendida como um negócio jurídico e, de acordo com a teoria geral dos negócios jurídicos, estes podem ser anulados “se se verificarem vícios de vontade”. Neste caso, embora a vontade do doador tenha sido a de contribuir para o pagamento do tratamento, afinal aquilo que para que contribuiu não era aquilo para o qual decidiu doar o dinheiro. Embora os pais da bebé garantam que os mais de dois milhões de euros angariados estejam a ser distribuídos por outras famílias com crianças que sofgrem de atrofia muscular espinal (AME) de tipo 1, este não era o objetivo inicial.

“Exigir o dinheiro de volta só pode acontecer se houver o tal vício de vontade, não se pode doar e passado uns dias pedir de volta só porque sim”, diz Ana Borona.

Um exemplo: o IRA – Intervenção e Resgate Animal – estava a realizar uma angariação para comprar uma carrinha de ajuda e recolha de animais em Lisboa quando o caso de Matilde se mediatizou e foi então tomada a decisão de que o dinheiro revertesse para a bebé. Mas, antes de concretizar a doação, a organização questionou os doadores sobre se estavam de acordo com a alteração do objetivo da recolha de fundos. Cerca de 83% concordaram, revelava na altura o “Jornal de Notícias”. O dinheiro de quem não aceitou não foi usado (cerca de €25 em €7 mil). Como houve um pedido de autorização, o reembolso já não poderia ser pedido.

Este reaver do dinheiro só acontece por iniciativa do doador – e este pode decidir que não o quer fazer. Os pais de Matilde não têm qualquer obrigação legal de, por iniciativa própria, fazer a devolução.

Quem o quiser fazer deve entrar em contacto com quem recebeu a doação. Caso não obtenha resposta ou lhe seja recusado o reembolso, o doador pode avançar com uma ação judicial num tribunal civil para que o negócio jurídico seja “declarado nulo”, explica João Perry da Câmara. Ainda que o valor doado já tenha sido gasto, independentemente do seu destino o doador tem de ser restituído se assim o desejar.

O doador tem um prazo de um ano desde que tomou conhecimento que o destino do dinheiro seria outro para apresentar a ação judicial. Neste caso, o prazo contará, à partida, desde que o Governo anunciou que ia assumir todas as despesas do tratamento com Zolgensma.

Dado que algumas dúvidas foram levantadas sobre o destino dos mais de dois milhões de euros angariados, os pais de Matilde reuniram os jornalistas esta quinta-feira para esclarecer o seu destino. Foram ajudadas “cerca de 10/12 crianças”, portadoras de AME de tipo 1 mas, também, portadoras de outras doenças raras. Agora, o apoio será estendido aos portadores de AME de tipo 2, que se estima serem no país entre 70 a 80. O auxílio já concedido (pagamento de equipamentos ou de terapias) ascende a um valor de “50 a 60 mil euros”, disseram os pais de Matilde.

A conta em nome de Matilde – autorizada pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna “no âmbito das suas competências de autorização para angariação de receitas para fins de beneficência e assistência ou de investigação científica a elas associadas” – foi encerrada a 19 de julho. “Esta autorização teve em conta, para a instrução do processo, os relatórios médicos comprovativos da doença da criança, bem como comprovativo de entrega do IRS que provam a insuficiência económica. Verificou-se, igualmente, que a angariação visava um fim assistencial e de beneficência”, fez saber o Ministério numa nota enviada às redações.A última vez que os pais divulgaram o extrato da conta, a 4 de julho, o valor já chegava aos €2.517.226,13.

Matilde tem quatro meses. Às duas semanas de vida, os médicos elaboraram o diagnóstico de Atrofia Muscular Espinhal tipo I. Até então, em Portugal, apenas estava disponível o tratamento com o Spinraza, que implica a toma vitalícia de injeções, uma vez que apenas atrasa a destruição da proteína e não estimula a sua produção.

O novo tratamento, o Zolgensma, é considerado uma revolução que não só trava a destruição da “proteína de sobrevivência do neurónio motor”, como introduz no corpo um vírus que vai permitir a produção desta proteína em falta nas pessoas com atrofia muscular espinhal. É apenas tomada uma dose. Sabendo que só estava disponível nos EUA, os pais da criança começaram uma campanha de angariação de fundos para pagar a viagem e a terapêutica – embora mais tarde os médicos tenham desaconselhado que a bebé saísse do país.

O tipo I de Matilde é a forma mais perigosa, surge logo nos primeiros dias de vida e pode ser fatal. Atualmente, todos os tipo I receberam o tratamento com o Spinraza, um medicamento injectável na medula sem custos para os utentes. O Expresso tentou contactar os pais de Matilde, mas sem sucesso.

Article précédentRanking UEFA. Portugal muito perto da Rússia
Article suivantJornal L’Equipe troca logo do Benfica pelo do FC Porto.