« É contra ventos e marés que temos que nos preparar para manter vivas as aspirações de Abril » – Francisco Fanhais

Francisco Fanhais, cantor. Foto © Maria do Sameiro Pedro, 7 Margens
Francisco Fanhais, cantor. Foto © Maria do Sameiro Pedro, 7 Margens

Francisco Fanhais, ex sacerdote e cantor, opositor ao regime salazarista e resistente exilado, feito Oficial da Ordem da Liberdade em 1995, participou na gravação da Grândola Vila Morena em 1971. O antifascista de 82 anos, assumidamente contra a guerra colonial, conta-nos a sua história.

Uma conversa conduzida por Didier Caramalho no ALFA 10/13 do dia 12 de Março de 2024:

 

Quais são os primórdios da Grândola? Tudo começou em 1964. Durante a ditadura de António de Oliveira Salazar havia (e ainda há) no município de Grândola, distrito de Setúbal, a Sociedade Musical de Fraternidade Operária Grandolense – também conhecida como Música Velha. Fundada no dia 1 de Maio de 1912, esta associação fazia contraponto a toda a situação que se vivia no Portugal ditatorial. Pois, durante o Estado Novo, a SMFOG desenvolveu uma dinâmica cultural de enorme relevância no panorama local, destacando-se as iniciativas promotoras da liberdade, da fraternidade, da amizade e da democracia. Nas décadas de 1960 e 1970 foram promovidos espetáculos, encontros e conferências com a presença de importantes figuras da oposição ao regime.

No dia 17 de maio de 1964, a SMFOG convidou José Afonso – acompanhado do Carlos Paredes e do Fernando Alvim. O artista gostou tanto de lá ter ido que começou a idealizar e escreveu um poema: Grândola Vila Morena. Compôs a música, escreveu a letra e em 1971 gravou-a nos arredores de Paris – bem como o álbum todo, Cantigas de Maio – com o produtor José Mario Branco, o guitarrista Carlos Correia e o amigo Francisco Fanhais no Château d’Hérouville. Grândola é uma música inspirada nos trabalhadores dos campos no Alentejo que arrastam os pés de cansaço ao regressar à casa, e passou a ser o emblema da Revolução dos Cravos. A canção construída com os fundamentos corais e a rítmica do cante alentejano é hoje um monumento. A história da gravação – nomeadamente a dos passos na gravilha, às três da manhã, no frio de uma noite de inverno – é bastante caricata e merece ser ouvida mais acima.

Francisco Fanhais, José Mário Branco e José Afonso na gravilha onde gravaram os passos da "Grândola Vila Morena". Château d'Hérouville, França, 1971. © Patrick Ullmann/ Associação José Afonso
Francisco Fanhais, José Mário Branco e José Afonso na gravilha onde gravaram os passos da « Grândola Vila Morena ». Château d’Hérouville, França, 1971. © Patrick Ullmann/Associação José Afonso

Grândola Vila Morena foi difundida à 00h20 do dia 25 de Abril de 1974 na Rádio Renascença, dando assim sinal às forças armadas para derrubar a ditadura salazarista. Antes, às 23h, tinha sido a Depois do Adeus do Paulo de Carvalho que preparou os militares do país inteiro a sair. « Calculo a pressão enorme, a ansiedade, o estado de espirito de todos aqueles que estavam implicados na revolução do 25 de Abril, imagino a tensão que não há de ter sido naquela hora e vinte entre a música do Paulo de Carvalho e a Grândola » confessou Francisco Fanhais.

Foi em 1963, ainda no seminário de Almada, que Francisco Fanhais descobriu a obra musical do Zeca Afonso. Quase as escondidas – « porque até nos seminários as paredes tinham ouvidos » –, aquele EP a tocar no seu « gira disco de plástico mais antigo » foi como « uma janela que se abre para qualquer coisa de diferente ». Um primeiro encontro estritamente musical. Daí a sua vontade grande de conhecer o José Afonso. O que aconteceu no dia 28 de Dezembro de 1968, na freguesia das Lapas, concelho de Torres Novas, durante um encontro cultural nas grutas da povoação organizado por Fernando Cunha. Nesse dia – documentado por um relatório da PIDE – Francisco Fanhais acabou por conhecer pessoalmente José Afonso. Uma amizade eterna nasceu então. Uma amizade que a música uniu e jamais separará.

Muito rapidamente, Francisco Fanhais foi impedido de dar aulas, ele que era professor de religião e moral no liceu local da paróquia do Barreiro. Foi também suspenso das suas funções de padre, por ter participado na celebração da missa de casamento de José Felicidade Alves, um ex padre que o cardeal Gonçalves Cerejeira tinha suspendido do ministério. Enfim, foi impedido definitivamente de cantar os discos que gravou em Portugal: Cantilena em 1969 e Canções da Cidade Nova em 1970.

Por estar proibido de dar aulas, de ser padre e de cantar, exilou-se em Paris entre 1971 e 1974. Foi para França « à boleia com Zeca Afonso ». Por cá, Francisco Fanhais participava em concertos junto de comunidades de emigrantes portugueses, com a ajuda cúmplice do José Mario Branco. Assim ia ganhando a vida e despertando as consciências. Desenvolveu também a atividade de locutor de rádio e actor com Richard Demarcy e Teresa Mota.

Francisco Fanhais regressou a Portugal após o 25 de Abril de 1974, prosseguindo a carreira como cantor em sessões de apoio a cooperativas agrícolas, comissões de trabalhadores e de moradores, assim como nas campanhas de Dinamização Cultural. Pertenceu ao grupo fundador da Era Nova – Cooperativa de Ação Cultural. Em 1984, fixou-se no Alvito, dedicando-se ao ensino de Educação Musical. A 9 de junho de 1995, foi feito Oficial da Ordem da Liberdade por ocasião das comemorações do Dia de Portugal.

Estamos a fazer 50 anos agora: é o ano I dos outros 50 anos até ao centenário. Podemos dizer que estamos então no ano I de retomar as conquistas de Abril, de mobilizar novas forças, de readquirirmos coragem. A esperança é a última a morrer.

Quando se fala nas eleições legislativas de Março de 2024, Francisco Fanhais evoca desgosto e « frustração muito forte ». « Sabemos que há muitos deputados do Chega que têm processos criminais pendentes » relembrou o cantor. E que os deputados extremistas relevam de uma « ideologia xenófoba e racista ». « Quem é que imaginava, há dois ou três anos, que estas eleições iam dar no que deu? Vamos ver mas esta situação não é nada agradável » salientou Francisco Fanhais.

A situação política criada atualmente é um apelo grande aos desejos de continuar as conquistas de Abril, de não baixar os braços. « O homem tem de viver com um pé na primavera » e de todas as formas, « este caminho não é reto ». Francisco Fanhais acaba por citar a Maria de Lourdes Pintassilgo: « nunca ninguém levantou voo que não fosse contra o vento ».

Portanto é contra ventos e marés que temos de nos preparar para manter vivas as aspirações de Abril. 25 de Abril, sempre!

Didier Caramalho

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