Mais uma reforma ou princípio do desmantelamento do sistema de pensões em França?
Além de acontecer num momento económico e social particularmente delicado, marcado pela forte inflação e a diminuição do poder de compra , esta reforma é não só injusta como desnecessária – Opinião de Cristina Semblano (Economista, dirigente do BE), publicada no jornal Público de 06/03, enviada à Alfa).
Após as grandes manifestações de 2019 e o parêntese da pandemia, o Governo Macron resolveu voltar à carga com a reforma das pensões que constitui um compromisso de campanha com o seu eleitorado de reformados abastados e o grande patronato, desencadeando uma ira popular inédita, e ressuscitando uma frente sindical unida de que já não havia memória há mais de uma década em França.
Com efeito, esta reforma – para além de acontecer num momento económico e social particularmente delicado, marcado pela forte inflação e a diminuição do poder de compra das famílias afectando com particular violência as classes populares – é não só injusta, como desnecessária.
É injusta ao propor um recuo da idade da reforma de dois anos, de 62 para 64, e uma aceleração do período contributivo de 43 anos, que vai prejudicar, em primeiro lugar, os trabalhadores mais modestos e com trabalhos mais penosos, bem como as mulheres com carreiras profissionais intermitentes e salários desiguais.
Com efeito, a esperança de vida não é igual para todos (um operário tem uma esperança de vida inferior em sete anos à de um executivo), sendo que 1/3 dos trabalhadores já não está empregado na altura de poder aceder à reforma, o que, no império do novo projecto, implicará o prolongamento dos períodos em que se não é nem empregado nem reformado e a criação ou intensificação de bolsas de pobreza, com as respectivas consequências negativas para a saúde dos trabalhadores e o valor das pensões…
Por fim e, contrariamente à narrativa do Governo, este projecto não é mais justo para as mulheres, não contendo nenhuma medida que contrarie as desigualdades de género ao nível de pensões que continuam a ser muito importantes, nomeadamente no que respeita ao valor das pensões directas das mulheres, inferiores em 40% às dos homens, ao tempo de carreira mais curto, 40% das mulheres contra 32% dos homens, reformando-se com carreiras incompletas, enfim, à idade mais avançada na qual as mulheres acedem, em média, à reforma, já que 19%, contra 10% dos homens, aguardam pelos 67 anos a fim de evitar sofrer cortes nas suas pensões.
Mas, para além de injusta, esta reforma é desnecessária, o que acresce à percepção da sua injustiça. O argumento avançado pelo Governo para a justificar é o remake da mesma encenação que serviu para justificar as reformas anteriores, a saber, o factor demográfico, traduzido na diminuição do rácio número de activos/número de reformados, e o défice insustentável daí decorrente.
Ora, como pertinentemente faz notar o economista Michäel Zemmour, as reformas anteriores que o mercado de trabalho ainda não absorveu (recorde-se inclusivamente a passagem ainda recente (2010) da idade da reforma dos 60 para os 62 anos) exigiram esforços superiores ao aumento da esperança de vida que, sendo um facto, se realiza a um ritmo cada vez mais lento.
Por outro lado, e longe do catastrofismo do Governo, o défice do sistema de pensões previsto para os próximos anos é despiciendo (12 mil milhões de euros anuais) quando comparado com o valor total que as pensões envolvem (mais de 300 mil milhões de euros) e com o défice público (172 mil milhões projectados para 2023), não justificando qualquer precipitação reformista.
Na realidade, a atitude do Governo francês, apresentando-se como salvador de um sistema em perigo, reside no facto de a reforma das pensões não proceder de um diagnóstico inerente ao sistema de pensões, constituindo, antes, a forma (ou a variável de ajustamento) que escolheu para poder respeitar a trajectória das finanças públicas que traçou e com que se comprometeu com Bruxelas 3), numa altura em que decidiu continuar a baixar os impostos de produção das empresas num valor que vai representar 8 mil milhões de euros anuais, a partir de 2024.
Sacrificar a saúde e o merecido direito ao descanso da população, sobretudo da mais vulnerável, destronando a França do lugar que ocupava no pódio dos países onde o sistema de pensões era o mais generoso e produzia o menor número de pobres, para presentear o capital em nome do sempiterno mas desmentido aumento da competitividade da economia francesa: eis mais um passo que é dado na construção já avançada da sociedade com que o neoliberalismo – de que o macronismo é um dos expoentes máximos – sonha: a sociedade da regressão social.
É na via desta sociedade de regressão social que se insere a reforma imediatamente anterior a este projecto, do seguro de desemprego que é, como justamente a analisa o economista Romaric Godin, a outra face da mesma moeda, amputando drasticamente os direitos dos desempregados, mas fazendo poupar ao Estado 4 mil milhões de euros de despesa pública. No fundo do túnel já se vê com nitidez uma sociedade de pleno emprego, mas um pleno emprego de miséria, como o qualifica justamente o mesmo autor, já que o objectivo é assegurar às empresas, numa economia de baixa produtividade, uma mão-de-obra cada vez mais barata, constrangida, para sobreviver, a produzir riqueza até à última possibilidade.
Desmistificados os objectivos da reforma das pensões, a saber, continuar a empanturrar as empresas com ajudas públicas – que só no período 2006-2018, sob diversas formas, das subvenções às prendas fiscais, passando pela diminuição (ou isenção) das contribuições sociais sobre os salários, e sem nenhuma exigência de contrapartida, cresceram cinco vezes mais depressa do que o PIB – e oferecer ao patronato um “mercado de trabalho” domesticado, podemos dizer, com o economista e filósofo Frédéric Lordon, que a reforma em questão se deveria chamar “serviço do capital”.
Este serviço do capital exige doravante que se vá para além do objectivo de estabilização das pensões no Orçamento do Estado, enveredando pela sua diminuição. É a razão pela qual esta reforma pode constituir um marco na via do desmantelamento do sistema de pensões por repartição em França, criado no pós-guerra e baseado na solidariedade intergeracional, satisfazendo assim o apetite voraz do capital financeiro, que vê com cada vez menos bons olhos um tesouro de mais de 300 mil milhões de euros escapar-lhe.
As economias que esta reforma vai permitir realizar serão parcialmente anuladas, desde já, pelo aumento inelutável do desemprego dos seniores, pela degradação da respectiva saúde e pelo recrudescimento dos acidentes de trabalho num país onde estes já atingem um triste lugar de relevo nas comparações europeias.
Mas a reforma das pensões deve ser analisada no âmbito mais vasto da filosofia política dominante que a sustém, como no-lo propõe a filósofa Barbara Stiegler, a saber, o neoliberalismo. Querendo fazer tábua rasa do passado, o seu objectivo é suprimir todos os espaços e temporalidades que possam oferecer abrigos face ao grande jogo da competição mundial no qual cada um deve participar. Assim analisada, a ideia mesmo de se retirar (de se reformar) é, para a ideologia neoliberal, um arcaísmo.
Ouça aqui outra opinião (de Pascal de Lima) sobre as greves: