Futebol feminino. A vagina de Charlie Hebdo e a sátira preguiçosa e sexista

A vagina de Charlie Hebdo e a sátira preguiçosa e sexista

Uma crónica de

Paula Cosme Pinto

PAULA COSME PINTO / Expresso

Se querem tanto igualdade, então vamos criticar-vos tanto quanto aos homens no que toca à estupidificação de massas que é o futebol. Foi este o ponto de partida para a capa do Charlie Hebdo sobre o Mundial Feminino de Futebol, mas por mais que o argumento até pudesse ser um exercício de reflexão válido, a sátira deu lugar a apenas mais uma repetição de estereótipos sexistas, que – sem surpresas – reduzem as mulheres ao sexo. A sério que nem no humor se consegue mais do que esta piada básica?

Quer se goste ou não do registo, a equipa do Charlie Hebdo foi-nos habituando a cartoons provocatórios sobre os mais variados temas, desde a política ao terrorismo, da religião ao universo económico. O humor e a sátira são essenciais enquanto exercício de liberdade de expressão, escusado será dizer. É preciso que exista espaço livre para metermos o dedo nas múltiplas feridas das nossas sociedades e questionarmos o mundo que nos rodeia, mesmo que de vez em quando isto possa até parecer uma afronta a muitos dos paradigmas que nos regem. Quando isto é feito com inteligência, é brilhante. Quando é feito com preguiça, é apenas básico e, como neste caso, pode roçar o azeiteiro e não atingir qualquer propósito valido.

Muito fui lendo sobre a capa do Charlie Hebdo sobre o Mundial Feminino de Futebol, cujo cartoon se reduz a uma vulva entreaberta a ser penetrada por uma bola de futebol. O título que a acompanha é curto e grosso: “Vamos ter de comer disto durante um mês” (é a primeira vez que tal competição consegue ter esta duração, daí essa referência temporal, mas já lá iremos quanto à escolha da frase). Muita gente se indignou automaticamente, achando repulsiva a forma como se abordava o tema, não só pela sexualização da mulher – reduzida à sua genitália – como pela própria desvalorização de um acontecimento que é um marco na história do desporto feminino e que tem trazido para a esfera pública a discussão sobre uma série de tópicos tão importantes quanto a diferença de prémios, oportunidades ou obstáculos colocados a atletas masculinos e femininos, e o que tudo isto nos diz sobre a desigualdade de género.

Por outro lado, é curioso como tanta gente também tentou ver nesta capa um símbolo de poder, ora porque a bola poderia significar um clítoris e isto ser sinónimo de um mês de prazer para as mulheres, ora porque finalmente se enaltecia a genitália feminina sem pudor, e isso é empoderamento feminino. Tentar ver o lado positivo deste tipo de questão é não só um voto de boa fé, parece-me, mas também de certa forma uma tentativa de demonstrar que nós, mulheres, não estamos a sempre a ver coisas erradas onde elas até podem não existir, como agora tanto se apregoa. Isto parece-me um ponto de partida por si só representante de alguma desigualdade, como se as mulheres tivessem necessariamente de justificar as razões que as levam ao descontentamento, quando essas mesmas razões deviam ser do senso comum, mas adiante. Muitas interpretações foram feitas, é certo, mas basta ler o editorial para se chegar a uma triste constatação: este cartoon podia ser uma crítica brilhante e pertinente, mas cai no erro de ser apenas preguiçoso e reforçador de estereótipos.

O editorial – que podem ler clicando aqui – explica que no Charlie Hebdo a crítica é válida para todos, e que sendo o futebol um evento de massas que consideram patético, altamente corrupto e pouco adaptado à escala humana enquanto negócio, um evento desta dimensão merece ser satirizado, independentemente dos seus intervenientes. Aliás, o facto de as mulheres, no seu caminho pela igualdade de oportunidades, seguirem as pisadas erradas dos homens parece ser o ponto chave para a crítica implícita. Por mais que ache sempre por si só já um mau sinal penalizarmos duplamente as mulheres por repetirem os mesmos erros dos homens, como se estas tivessem de ser dotadas de uma superioridade moral enquanto seres humanos quando da vida em geral se fala, percebo o ponto de vista. E até acho que esta poderia ser uma reflexão pertinente, já que o sucesso feminino numa atividade masculinizada acaba também por depender de uma série de esquemas económicos que lhe traga uma dimensão e lucros associados que assim o permitem. Sem dinheiro envolvido, algum dele de proveniência duvidosa e à conta de uma massificação da modalidade que muitas vezes ultrapassa os tais valores humanos, não há crescimento da mesma. Muito bem, critiquemos isto, faz sentido. Mas depois lemos o editorial todo e há sinais de alerta no tom de desdém com que é escrito que nos levam a perceber o resultado final que fica tão aquém das expectativas.

“A igualdade hoje em dia é uma religião”, lê-se algures na prosa, que compara o sucesso de vendas deste Mundial Feminino a um novo detergente da roupa (pergunta para queijinho: se fosse um campeonato masculino fazia-se alusão um produto da esfera doméstica? (Estas subtilezas dizem muito). Religião e igualdade de género não são temas sequer equiparáveis, e a mensagem que se acaba por passar está longe de ser uma que assente no domínio da razão. Como se a discussão sobre igualdade de género assentasse apenas numa crença num deus qualquer abstrato e não uma necessidade de consciência plena sobre o respeito por direitos humanos básicos que se traduzem em pilares tão simples – mas longe de serem reais – como a igualdade de oportunidades, segurança, direitos e de dignidade entre homens e mulheres.

Um editorial que faz esta comparação, que considera que as mulheres querem é ser iguais aos homens nos tempos que correm (a sério que ainda acham que a luta pela igualdade é sobre isto?) e que reforça que hoje em dia vivemos num mundo onde qualquer homem branco acima dos 50 anos está sujeito a ser criticado mal ponha o pé em falso a falar com ou sobre mulheres, é um editorial escrito por alguém que na realidade não percebe bem o que está em causa quando deste tema falamos. E que muito provavelmente não percebe que a demanda das mulheres por um mundo mais equilibrado não é apenas uma demanda feminina, mas de todas as pessoas que percebem que já vai sendo tempo de retificarmos um desfasamento histórico que tem causado inúmeros prejuízos às vidas de milhões de vidas mundo fora. O que acontece no universo do futebol é apenas mais um exemplo.

Não me admira, portanto, que surja uma capa em que mais uma vez reduz a mulher àquilo que tem entre as pernas, retirando-lhe qualquer outra dimensão da sua existência. E que se opte por fazê-lo com recurso ao cliché de um estereótipo reproduzido à medida do prazer masculino e não da emancipação ou prazer feminino. Não é certamente ao acaso que a vulva está a ser penetrada por um objeto que ainda, quer queiramos quer não, é um símbolo masculino, e que o título use o jargão “comer disto”, é basicamente reduzir a mulher ao naco de carne do costume, aquele que é comido das mais variadas formas – física, emocional, moral, fantasiosa, social – pelo sexo masculino. Isto leva-nos mais uma vez a desfocar do essencial e a menosprezar a mulher enquanto ser humano para além do seu potencial sexual e erótico. É triste que nem mesmo a sátira consiga ir mais longe quando decide colar-se ao tema da igualdade e que caia no erro de recorrer à sexualização da mulher como primeira estratégia de abordagem a um tema que até podia fazer sentido. É como os comentários que se ouvem por cá nas bancadas durante os jogos de futebol feminino, que invariavelmente se reduzem a frases sexuais como “comia-te toda”, “belas mamas” ou “abocanha aqui”. Pelo vistos, no humor passa-se o mesmo: se o tema envolve mulheres, basta desenhar uma vulva, fazer um piadinha porca com duplo sentido e já está. Não é só o respeito que está em crise, pelos vistos a imaginação também. Enfim.

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