Jacques Chirac, o esplêndido troca-tintas

De eurocético a europeísta, de reticente com os portugueses a amigo de portugueses. Jacques Chirac, neogaullista, o homem que ficou para a História como o dirigente ocidental que mais se opôs à guerra no Iraque, foi um fenómeno na política francesa.

Alfa/Expresso. Por Daniel Ribeiro

Desempenhou a função presidencial entre 1995 e 2007 e retirou-se da vida pública e política após uma das mais longas carreiras políticas na Europa: duas vezes Presidente, duas vezes primeiro-ministro e presidente da Câmara de Paris durante 18 anos. Faleceu nesta quinta-feira, aos 86 anos, depois de doença prolongada.

Foi polémico e contraditório quanto baste, protagonizou escândalos de diversas ordens, por vezes político-financeiros ou familiares, alguns deles, importantes, fizeram-no vacilar (foi condenado a dois anos de prisão com pena suspensa por mau uso de fundos públicos), mas saiu sempre bem de todas as confusões em que se meteu ou o meteram.

Conheceu problemas de todas as ordens, foi traído por alguns dos seus mais próximos colaboradores (como pelo seu antigo primeiro-ministro, Édouard Balladur, que se candidatou ao Eliseu contra ele em 1995), mas, como conhecia a França como poucos, acabou por vencer tudo e todos na política.

Depois do socialista, François Mitterrand, nunca mais ninguém lhe conseguiu realmente fazer frente. Mesmo Mitterrand, quando chegou ao fim da vida, terá reconhecido qualidades ao seu rival de quase sempre. “A França fica em boas mãos”, terá dito o velho socialista a alguns dos seus últimos visitantes.

Este repórter esteve com Jacques Chirac várias vezes em entrevistas ou em conversas a sós. Num país de bom vinho, ele gostava mais de cerveja. Um dia, em 1995, em campanha eleitoral para as presidenciais, em Amiens, entrou comigo num café e pediu um fino. Bebeu-o encostado ao balcão, de um trago. “Chiça, estava com sede!”, exclamou com o seu vozeirão imponente e limpando a boca com as costas da mão direita.

Andava na altura em campanha de mangas arregaçadas e sem gravata e, nesses tempos, em 1995, apoiava a UNITA, em Angola. Perante a minha objeção de que a França apoiava o MPLA, através das suas grandes petrolíferas, ficou pensativo um instante, mas respondeu firmemente: “A política da França não se decide pelos interesses no petróleo!”. Neste caso de Angola, viria a fazer marcha-atrás mais tarde, como o fez em muitos outros assuntos.

Os seus detratores consideravam-no um troca-tintas, por mudar frequentemente de opinião. Aconteceu também com os portugueses, junto dos quais contou até ao fim com alguns bons amigos, designadamente da Comunidade de França, muitos deles empresários como Armando Lopes e António Cardoso – condecorou ambos com a Legião de Honra – ou Mapril Baptista, que o encontrara pela primeira vez em 1986. Mas também não desprezava militantes associativos como Abílio Laceiras, que o conheceu quando ele ainda era apenas “maire” de Paris e o chegou a receber na Câmara em conjunto com o atleta português, Carlos Lopes. Mas, mais uma vez, aqui, foi troca-tintas: prometeu ao fundista de Viseu a medalha de Ouro de Paris e nunca lha deu.

Jacques Attali, antigo conselheiro especial de Mitterrand no Eliseu, descreve no seu livro “Verbatim” (três volumes) que no decorrer de uma reunião no Eliseu, que presenciou, no dia 24 de junho de 1987, Jacques Chirac se “opôs violentamente à ajuda que os países ricos dão às regiões mais pobres, gregas, portuguesas e italianas”. “Os portugueses nem sequer sabem ler, é uma armadilha para estúpidos!”, terá exclamado Chirac sobre as ajudas estruturais, segundo afirma Attali (Verbatim, vol II, página 343). O então primeiro-ministro preferia dar as ajudas aos agricultores franceses.

O conselheiro especial Attali relata a mesma opinião de Chirac sobre os fundos estruturais europeus nas páginas 244/5 do mesmo volume.

Anos mais tarde, durante a sua campanha eleitoral de 2002, Jacques Chirac garantiria a este repórter que tudo isso era uma malvadez e uma mentira.

“Sempre adorei os portugueses e reconheço o valor que eles criaram e o que fizeram pela França!”, exclamou no fim de uma entrevista na Rádio Alfa na qual, para surpresa de todos os presentes, escolheu como música para pôr fim à entrevista um tema de “Por este rio acima”, de Fausto. “Senhor Presidente, Fausto é um homem de esquerda!”, disse-lhe. “Ninguém é perfeito, mas você gosta ou não da música?”. “Gosto, claro, é excelente”. “Então tudo bem!”, respondeu.

Jacques Chirac foi hospitalizado diversas vezes desde que deixou o Eliseu, a primeira vez vítima de um derrame em 2005.

A notícia da morte foi comunicada pelo genro, Frédéric Salat-Baroux. Segundo ele, Chirac morreu ao início desta manhã, entre familiares, “pacificamente”.

Como Presidente será lembrado no mundo inteiro por ter liderado uma forte e bem argumentada oposição da França à invasão do Iraque, lançada pelos EUA em 2003. “A guerra é sempre o último recurso. É sempre uma prova de falhanço. É sempre a pior das soluções, porque traz morte e miséria”, disse.

Sobre a guerra contra o Iraque criticou diretamente também o português José Manuel Durão Barroso, pelo apoio que deu aos americanos, sem o ter ouvido a ele, num livro de memórias (dois volumes) publicado em 2011.

Atacou igualmente Barroso neste mesmo livro de memórias, a propósito do seu « exagerado liberalismo” como Presidente da Comissão Europeia.

Na realidade, sobre a Europa, Chirac evoluiu: começou na vida política por ser eurocético e demasiado egoísta e franco-francês, mas acabou os seus mandatos como europeísta convicto, em grande estilo como um autêntico “gaullista social”, o que ele na verdade era.

Em França, muitos também o recordarão por sempre se ter recusado debater frente a frente com o líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie le Pen, em direto na televisão. “Desprezo esse homem, nem lhe olho para a cara”, disse quando o chefe da Frente Nacional o desafiava na segunda volta das presidenciais de 2002.

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