Legistivas 2019. O arrufo, um milagre e o dedinho apontado. Todos contra Costa no último debate
No confronto organizado pela RTP, olhos nos olhos, Catarina Martins fez o maior ataque desta campanha a António Costa. Assunção Cristas mordeu e não largou o PM até ao fim, quando falou de corrupção. O socialista foi apanhado entre o fogo amigo da bloquista e o hostil da centrista mas, com Rio, foi mais irónico que agressivo. Jerónimo continuou em baixo de forma e André Silva disse que em Portugal há « escravatura »
De um lado Assunção Cristas, do outro Catarina Martins. Apertado entre uma adversária a atacar pela direita – em luta desesperada pela sobrevivência – e uma (espécie de) parceira à esquerda a lutar pela relevância, António Costa alterou a compostura que manteve nos outros debates. « Não vale a pena estender o dedinho », avisou Cristas. « Só mesmo da sua cabeça », desdenhou de Catarina. « O meu país não é [feito] só de herdades do Alentejo », atirou à líder do CDS. Pior, comparou-a a Trump, as duas únicas “pessoas no mundo que defendem a descida dos impostos sobre os combustíveis”. Sempre que pôde, distribuiu pancada, como para Rui Rio, sobre as contas das propostas do PSD: « Eu que sou tido por otimista, isso é ultra-otimista. É um milagre. » Antes de arrancar para a campanha eleitoral, Costa apareceu em modo ‘a melhor defesa é o ataque’, contra todos os que investiram contra si. (Pode ler aqui a estatística do David DInis sobre quem atacou quem)
No debate desta segunda-feira à noite na RTP, as líderes do CDS e do Bloco quase monopolizaram os ataques, Rio esteve mais discreto mas com contas feitas na mão para atirar a Costa, Jerónimo continuou semi-desaparecido e André Silva manteve o mantra do PAN. A atitude de Catarina Martins foi a mais eloquente de uma estratégia pensada: ao longo da emissão, foi fazendo elogios à ‘geringonça’ e críticas ao PS. Assumiu as virtudes da solução, apontou falhas (como nas leis laborais), mas foi mortal para Costa quase no fim, no momento mais quente do confronto. A pergunta da moderadora era sobre alterações climáticas, mas a resposta revelou antes uma alteração profunda do clima entre os dois parceiros.
« SABEMOS OS DOIS O QUE ACONTECEU ». O ARRUFO À ESQUERDA
Catarina Martins começou por dizer que tinham sido « deselegantes » as críticas de Costa e de Rio ao Bloco no seu frente a frente da manhã (ou seja, colocou ambos no mesmo saco). Depois, lembrou que o socialista se referiu às linhas vermelhas que Catarina colocou no célebre debate de 2015 como um « golpe de teatro », quando acabou por as aceitar na posição conjunta. E afirmou sentir-se ofendida: « No último mês, o PS usou o argumento da crise para apelar a uma maioria absoluta para se livrar dos ’empecilhos’ da esquerda », lendo estas atitudes de Costa como uma « forma de tentar um insulto pessoal dispensável ». A seguir, deu a estocada: lembrou uma reunião « no domingo de manhã » – dia das legislativas de 2015 – em que antes de saberem os resultados os dois partidos se reuniram para se concertarem. « Sabíamos que o PS tinha aceitado descongelar as pensões e estávamos disponíveis. Sabemos os dois o que aconteceu… »
Mas é preciso descodificar o ataque da coordenadora do Bloco. A semana passada, em entrevista ao podcast do ex-bloquista Daniel Oliveira, António Costa disse que « esta soluçao governativa foi construída apesar do Bloco de Esquerda ». Mas não era a primeira vez que o socialista apagava o BE dos primeiros momentos da ‘geringonça’, deixando apenas o PS e o PCP na fotografia. Está a « reescrever a história », acusou Catarina Martins. « Não se queimam pontes quando se querem fazer pontes. Não sei se o PS está zangado com os últimos quatro anos, o BE não está. O BE não está zangado e quer continuar a trabalhar ».
Nesta competição, Costa e Catarina concorrem pelo voto útil à esquerda: se o PS tiver maioria absoluta, o Bloco é irrelevante mesmo que tenha um bom resultado; se o PS precisar de parceiros, o BE está disponível, mas sabe-se que Costa prefere o PCP (e não descarta o PAN). Um resultado do BE acima dos 10% seria uma má notícia para os socialistas e tudo isto condiciona o debate. Na resposta, o líder do PS acusou Catarina de revelar conversas privadas e lembrou que o Bloco tem o PS como principal adversário, citando a própria Catarina a dizer que « a história desta legislatura é o confronto do PS com os partidos de esquerda ». Foi então que disse: « Só mesmo da sua cabeça ». Foram minutos quentes. Os mais tensos, talvez, de toda a série de debates.
Com humor, Rui Rio pôs-se no lugar de espetador: « Não paguei bilhete [para assistir a isto]. É um arrufo que normalmente é tratado dentro de casa, isto é um arrufo pré-eleitoral ». Assunção Cristas, porém, não ficou sentada na bancada a ver o espetáculo… desceu ao ringue e calçou as luvas.
CRISTAS A DAR TUDO, E A APONTAR O « DEDINHO » À CORRUPÇÃO
Sempre a interromper, a lançar apartes, e a intervir fosse qual fosse o tema, Assunção Cristas deu tudo para mostrar que à direita não existe outra oposição senão a sua (sentada entre os líderes do PS e do PSD, quando Costa entregou um papel a Rio sobre o investimento privado, até ironizou: « Eu ajudo a fazer a ponte para o Bloco Central… »)
Criticou o Governo e as esquerdas pelo « maior caos de sempre » na saúde, insistiu na carga fiscal recorde, no incumprimento da promessa dos médicos de família para todos (« faltam 700 mil », denunciou), apontou o aumento do tempo de espera para as consultas e atacou com armas que mais ninguém quis usar. A corrupção: » Não vejo ninguém a perguntar a António Costa » – seria uma crítica a Rio? – « sobre os casos » que ocorreram neste governo: « Cinco membros constituidos arguidos: Tancos, Galpgate, proteçao civil… Temos um presidente da Proteção Civil arguido e o PM está calado. Como é possivel passar uma campanha eleioral sem se falar disto? É uma vergonha nacional… », disse nos minutos finais. Foi tendo o condão de irritar Costa e de o forçar a sair do registo contido e explicativo cultivado nos debates, até que o socialista não resistiu a comentar a linguagem gestual da centrista: « Não vale a pena estender o dedinho! »
Mas houve mais: quando Cristas o acusou de não conhecer o país real, Costa ripostou com uma questão de classe social: « O meu país não é [feito] só de herdades do Alentejo ». Cristas reagiu: « Não tenho nenhuma. » E havia de completar que veio de Angola, onde os a família perdeu tudo e não foi indemnizada. Mais um ponto para o eleitorado de direita.
SÃO CONTAS, SENHOR: O « MILAGRE » DO PSD SEGUNDO COSTA
António Costa a Rui Rio chegavam à noite embalados pelo debate da manhã nas rádios, onde fizeram uma espécie de concurso de ‘Centenos’. À noite, fizeram uma guerra de números, motivados pelos dados corrigidos do crescimento revelados durante o dia pelo INE. « Eu que sou tido como otimista, o meu amigo, cuidado! É ultra-otimista », ironizou Costa com o seu ar mais divertido e de certa forma complacente. « Como faz esse milagre de cortar em 3.700 milhões de euros em impostos e aumentar a receita fiscal em dois mil milhões de euros? », questionou. Neste debate a seis, Costa tentou ser ele a interpelar Rio e a colocar o líder do PSD em causa. Não queria polarizar apenas com Catarina Martins e Assunção Cristas, mas também ao centro. Mas Rio não engrenou no tom duro da sua concorrência à direita.
O líder do PSD ajudou à bipolarização ao centro, sobretudo quando pegou nos números corrigidos do crescimento do INE – e argumentou que se manteve a maior carga fiscal de sempre. « A continha está certa até porque a fiz com máquina de calcular, não a fiz à mão, mas também sabia fazer. »
Rui Rio levava no bolso respostas que tinham ficado mal explicadas noutros debates – como sobre o aumento da carga fiscal, que Costa atribuiu ao crescimento económico e ao aumento das contribuições para a segurança social: « Se tirar essa receita da TSU », assegurou Rio, segurando um papel, « mantém-se o crescimento dos impostos sobre o PIB », justificou. Depois, tentou desmontar a tese do crescimento socialista: « Em termos reais, a economia portuguesa foi a segunda pior dos países da coesão. Isto é indesmentível. » E ainda lançou uma pergunta (que no início da legislatura era uma das preferidas do CDS): « Se o PS ganhar as eleições vai repor o imposto sucessório, mesmo com a ‘geringonça’? » Costa respondeu: « Não consta do nosso programa ».
Foi então que atacou as contas e a máquina de calcular de Rio como um gerador de milagres e de impossibilidades contabilísticas (o mesmo tipo de acusações a que o anterior Governo imputou ao famoso cenário macroeconómico de Mário Centeno em 2015).
O tema do dia era terreno favorável para Costa: « O INE arrasou tudo » o que a direita tem dito, apontou o socialista. O crescimento foi maior, a carga fiscal de 2016 e 2017 foi inferior a 2014 e 2015, a carga fiscal do ano passado também foi revista em baixa, o investimento foi maior do que se julgava. Afinal, diz Costa, a solução de governo destes quatro anos, que traria o diabo e iria assustar os investidores « não só não assustou os investidores como, pelo contrário, [eles] encontraram confiança para investir ».
O PIOR FORAM OS FOGOS: COSTA EM CAUSA PRÓPRIA
A primeira parte do debate, porém, foi menos intensa do que a segunda e quase toda dominada pelas leis laborais (e enormes críticas da esquerda ao Governo). Tanto Jerónimo de Sousa como Catarina Martins classificaram as alterações à lei laboral como o pior da última legislatura e explicaram todas as incidências das medidas. Para Costa, o pior foram « as tragédias » dos fogos « de 2017. Nada mais é comparável. Nada pode ultrapassar estas duas tragédias », reconheceu. Mas mais ninguém falou desse tema.
Depois de Cristas, a palavra corrupção só apareceu no debate por iniciativa de André Silva (voltou a insistir nos tribunais especializados sugeridos pela OCDE) que estimou por essa razão perdas para a economia da ordem dos 18 mil milhões e euros. O porta-voz do PAN, a propósito das leis laborais e do crescimento económico, enfaizou ainda que « o país está muitas vezes a desenvolver-se à custa de mão de obra escrava » e denunciou que Portugal é dos principais países onde se pratica « tráfico de seres humanos ».
À semelhança de outros debates desta temporada de legislativas, Jerónimo de Sousa não cresceu. Ficou pelas posições tradicionais do PCP e pouco mais. Discordou muito de Costa na área laboral, mas concordou nos aumentos do abono de família, por exemplo, ou no reconhecimento da necessidade de subir o salário médio. O secretário-geral comunista, no entanto, manteve as distâncias quanto ao cenário de uma nova ‘geringonça’: « Esta conjuntura não é repetível. »
Enquanto o comunista falava, Costa e Cristas continuavam um debate paralelo, o que valeu um puxão de orelhas da moderadora: « Não querem ouvir Jerónimo de Sousa? » Não. A conversa estava muito mais animada do outro lado.