
Marcelo Rebelo de Sousa assina a derradeira mensagem de Natal no Jornal de Notícias antes de passar o testemunho da Presidência da República, recordando Jorge Sampaio. O presidente exorta a que se reveja “o rol dos muros mais urgentes de superar”.
Em declarações aos jornalistas após ter almoçado no Barreiro (distrito de Setúbal), onde todos os anos, na véspera de Natal, Marcelo Rebelo de Sousa bebe a tradicional ginjinha, o chefe de Estado desejou aos portugueses, nesta quadra festiva, paz, considerando-a fundamental para que no próximo ano Portugal e a Europa não sofram “as consequências económicas, pessoais e sociais de não haver paz”.
É o último texto de Marcelo Rebelo de Sousa enquanto presidente da República, nas páginas do Jornal de Notícias, em dia de Natal. “Os nossos muros ou a lembrança de Jorge Sampaio” é o título do artigo de opinião do chefe de Estado, para quem “a pobreza já foi mais grave e já foi menos grave. Mas nunca deixou de ser grave demais para o todo nacional que somos”.
Num retrato dos atuais contextos nacional e internacional, o presidente da República evoca um dos antecessores em Belém, o socialista Jorge Sampaio, recordando a corrida política que ambos protagonizaram em 1989, pela presidência da Câmara Municipal de Lisboa, nas eleições autárquicas.
“Este ano, não sei porquê, lembrei-me de Jorge Sampaio. Estávamos em 1989. E concorríamos os dois – amigos já antigos, filhos de pais amigos já antigos – à Câmara de Lisboa. Caiu o muro de Berlim. E eu sublinhei esse momento decisivo na História contemporânea – e que viria a substituir as duas superpotências de décadas pelas duas superpotências de hoje, com a que deixou de o ser a nunca desistir do sonho do que fora. E converti o momento, em sinal para o futuro, também de Portugal”, escreve Marcelo Rebelo de Sousa.
“Aí, Jorge Sampaio respondeu a essa minha chamada de atenção – diria de razão na mudança no Mundo, mas, igualmente, conveniente como arma eleitoral – com um comentário muito simples e muito poderoso – mais importantes do que o muro de Berlim são os muros que existem na nossa terra. Não garanto o rigor dos termos, mas a ideia era essa”, recorda o presidente.Na quarta-feira, durante a tradicional deslocação à ginjinha do Barreiro, em véspera de Natal, Marcelo Rebelo de Sousa recordou o ano de 2023 como “uma tempestade perfeita” que combinou o pedido de demissão de António Costa e um “ambiente muito pesado” sobre Belém. Deixou também críticas ao Parlamento por causa da demora na eleição de conselheiros do Estado.
Escreve o chefe de Estado que, “todos os Natais, os cristãos acreditam mais na sua fé e todos, cristãos, outros crentes e não crentes, vivem a família, o encontro, o reencontro, a partilha possível para cada uma e cada um. Diferentes. Que não há duas pessoas iguais”.
“E muitos de nós recordam – na sua solidão ou no meio dos abraços e beijos de Natal – aquelas e aqueles que não têm Natal, nunca tiveram e nunca terão. Porque a miséria, a guerra, a morte, a doença ou a distância dos seus entes queridos toldam de uma tristeza, saudade, melancolia, dor, a alegria, mesmo se só possível, de um tempo de esperança”, prossegue.
“As televisões recordam os que sofrem na Ucrânia, no Médio Oriente, no Sudão. Mais raramente, o s que nasceram, vivem e morrem sem nunca ninguém saber que existem e quem são. Ainda assim, no Natal há quem pare um minuto para não se esquecer desses milhares de milhões sem Natal, ou milhões para quem o Natal em guerra passou a ser um modo de viver o Natal”.“E, este ano, este Natal, lembrei-me de Jorge Sampaio e da sua frase, obviamente eleitoral, mas, essencialmente, justa e certeira. Quase quarenta anos depois, Natal que ignore os muros de Berlim de hoje, os de lá de fora, os das guerras, ódios, disputas, pobrezas do Mundo, não é Natal, nem é nada. Porque, mais do que nunca, somos um só planeta, um só Mundo, uma só Humanidade”.
Marcelo observa, em seguida, que “os muros dos outros são os nossos muros. As fronteiras, as opressões, os sofrimentos dos outros, são as nossas fronteiras, opressões, sofrimentos. E as suas esperanças, ainda que muitos vagas, muito ténues, muito precárias, são as nossas esperanças. Para já do cessar-fogo no Médio Oriente, na Palestina, em Gaza. Ainda não na tão mais próxima Ucrânia”.
“Eu tinha razão ao falar no muro de Berlim. Nos muros lá de fora, que são cá de dentro. Inevitavelmente. Só que Jorge Sampaio tinha razão ao evocar os muros nascidos e agravados cá dentro. E que, alguns deles, não pararam de se agravar”, enfatiza.Na visita à Ginja de Natal do Barreiro, Marcelo Rebelo de Sousa referiu-se à próxima reunião do Conselho de Estado, agendada para 9 de janeiro, explicando que a Ucrânia – o tema escolhido – “é fundamental para a nossa vida”.
“A pobreza já foi mais grave e já foi menos grave. Mas nunca deixou ser grave demais para o todo nacional que somos. Antigos muros caíram. Novos muros se ergueram”, faz notar o presidente da República, para elencar a “pobreza com envelhecimento coletivo imparável”, ou “menos jovens a ficarem e mais gerações antigas a entrarem em becos sem saída”.
“Mais leis a prometerem melhor futuro com mais abertura, tolerância, paz, segurança e, ao mesmo tempo, mais medos, reais ou imaginários, mas todos vividos como reais, a convidarem a mais muros, muros mais altos, tão altos que não se veja nada senão muros”, enumera.
“Há muros que podem ser difíceis de demolir. Porém não são impossíveis. Quer isto dizer que percamos a esperança neste Natal, e fora dele e sempre? Claro que não. Umas vezes, ajudamos a derrubar muros. Outras, fracassamos. E o mais avisado talvez seja, neste Natal, revermos o rol dos muros mais urgentes de superar. Sem respondermos a um muro com outro muro. Que os muros tendem a alimentar-se de outros muros. E isso não cria esperança, alimenta condomínios fechados de egoísmos em que só alguns têm direito ao Natal”, conclui o presidente.
Com RTP, JN e Lusa.