Ministro francês diz que a Renault pode acabar, mas talvez não seja exatamente assim. Uma empresa que tem mais de cem anos, é um dos pilares da economia francesa e emprega mais de 179 mil pessoas em 39 países, não acaba devido à afirmação de um ministro. A situação financeira da Renault já teve melhores dias mas, ao que parece, o que está em causa é mais um amuo entre acionistas.
Alfa/Expresso. Por Vítor Andrade
Afrase de Bruno Le Maire, ministro da Economia e Finanças francês, na emissão da manhã da rádio Europe 1, na passada sexta-feira, caiu como uma bomba: “A Renault pode desaparecer”.
Estava assim ditado, em pouco mais de dois segundos de rádio, o fim de um dos alicerces da indústria francesa e europeia, fundada em outubro de 1898, na comuna de Boulogne-Billancourt, oito quilómetros a oeste do centro de Paris.
Há mesmo que sustente que a Renault foi, durante décadas, uma espécie de “vitamina social” de França, tendo ajudado muitos milhares de famílias a passar pelas fases mais difíceis da história do pós-guerra.
« Há uma necessidade urgente de agir », alertou, aos microfones da Europe 1, Bruno Le Maire. Para acrescentar então que, por causa do impacto do coronavírus, « a Renault pode desaparecer, os grandes fabricantes industriais podem desaparecer, é preciso ter lucidez ».
ONDA DE CHOQUE CHEGA AO JAPÃO
E o ministro continuou dizendo que « nunca escondi a gravidade da crise e não oculto a gravidade da situação da Renault « .
As suas declarações originaram de imediato uma onda de choque que atravessou várias fronteiras e até continentes, causando incomodidade junto dos parceiros nipónicos da Nissan, que hoje são donos de 15% da empresa francesa, praticamente o mesmo que os 15,01% detidos pelo Estado francês – a parte restante do capital está disseminado em bolsa e também por alguns privados, de onde sobressai a posição acionista de 3,1% da germânica Daimler.
O estragos reputacionais foram enormes, segundo alguns analistas mas, na verdade, acabam por ser um reflexo das palavras do próprio primeiro ministro francês, Edouard Phillippe, sobre a sobrevivência da fábrica de Flins, nos arredores de Paris, que está ‘presa por um fio’.
A culpa desta avalanche assassina de declarações políticas até pode ser do coronavírus – que arrasou impiedosamente todos os setores da economia – mas, com efeito, tudo começou alguns dias antes daquela fatídica sexta-feira, na sequência de algumas notícias que vinham sendo divulgadas e que colocavam a Renault numa posição financeira periclitante. A acumulação de prejuízos, poderia resultar no encerramento de fábricas como parte de um plano de corte de custos que alguns comentadores garantem que será superior a dois mil milhões de euros.
À ESPERA DE UM BALÃO DE OXIGÉNIO DE €5 MIL MILHÕES
Para já, há um balão de oxigénio de 5 mil milhões de euros a caminho, já aprovado pela União Europeia. O Estado francês, por seu turno, também dá o aval mas, como condição essencial, a administração da companhia não poderá deixar cair nenhuma fábrica em solo francês. Segundo fontes não oficiais que acompanham o processo, o governo defende que, a ter de haver encerramentos de algumas unidades, que tal ocorra em zonas geográficas mais periféricas da Europa ou, por exemplo, em África.
Ou seja, apesar de haver dinheiro à vista para tentar salvar a empresa, ainda nada está garantido.
O que também não está garantido, nesta fase de aperto financeiro ditado pelo coronavírus, é a continuidade da Renault na prova mais prestigiada do sector automóvel: a Fómula 1. A presença histórica da marca francesa nas pistas dá notoriedade, até pode retorno mas significa, acima de tudo, uma despesa anual de milhões que agora pode vir a ser dispensada.
‘GUERRA’ DE ACIONISTAS
“Estamos a falar de questões financeiras muito sérias, é um facto, mas não nos podemos esquecer de que também estamos a ser apanhados no meio de um discurso político, em que o governo francês quer manifestar uma posição de força. Quer fazer pressão tanto sobre a administração da empresa – para que corte em todas as gorduras possíveis mas sem afetar as fábricas implantadas em França -, como sobre o parceiro japonês da Nissan, com o qual as relações nunca foram muito pacíficas desde o ‘casamento’ entre as duas marcas”, nota uma fonte do sector ao Expresso.
Mas há ainda um outro público que o ministro da Economia e Finanças quer atingir com a sua posição de força: o eleitor comum francês, ao qual quer demonstrar que quem manda ali é Estado; um Estado forte e que sabe gerir o que é do interesse nacional.
No entanto, quando coloca a hipótese de a Renault “desaparecer”, Bruno Le Maire denota alguma incongruência até porque, na próxima quarta-feira, dia 27 de maio, vai ser apresentado o plano estratégico da empresa batizado de ‘Alliance’ – e que procura fortalecer a união entre a própria Renault, a Nissan e a sua participada Mitsubishi, mesmo que isso implique o fecho de algumas fábricas.
À ESPERA DO DIA 30 DE JULHO
Três semanas depois haverá uma assembleia geral da empresa onde muito do futuro do grupo automóvel poderá, de facto, ficar decidido em termos de estratégia política a seguir. Mas é a 30 de julho que tudo pode ficar ainda mais claro (ou mais negro), com a divulgação dos resultados financeiros do primeiro semestre.
A Renault encontra-se numa situação financeira muito crítica – com perdas líquidas em 2019 pela primeira vez em dez anos -, e que agora se agravou ainda mais com a paralisação de todas as suas unidades fabris por causa da pandemia. Mas a onda de encerramentos de fábricas é transversal a toda a indústria e a sua parceira Nissan até já admite eliminar 20 mil empregos.
TODOS OS CARROS RENAULT TEM PEÇAS FEITAS EM PORTUGAL
Em Portugal a Renault não deverá conhecer nenhuma perturbação na sua fábrica de Cacia (Aveiro), onde emprega 1100 pessoas. Nesta unidade, considerada “estratégica” para o todo o grupo Renault, está em curso um investimento de 100 milhões de euros que deverá colocar esta fábrica na linha da frente no fornecimento de uma nova geração de caixas de velocidades para muitos dos modelos da marca. A fase seguinte poderá ser a produção de caixas para veículos elétricos.
Quanto ao receio causado pelas declarações inquietantes do ministro francês da Economia e Finanças, uma fonte próxima da empresa de em Portugal diz apenas isto: “não há nenhum Renault a circular onde quer que seja que não tenha uma peça fabricada em Cacia”.
Oficialmente, os responsáveis da marca francesa em Portugal não comentam as afirmações de Bruno Le Maire sobre o desaparecimento da Renault.