Moçambique: a razão de um fundo pesar
O Presidente da República tem em Moçambique uma segunda pátria. Quase 40 anos depois, volta a assinar a Página Dois do Expresso para falar do sentido de irmandade na tragédia com um país que conhece desde a juventude
Anotícia chegou no fim de uma semana marcada por tragédias, dramas, debates. Um pouco por todo o mundo.
Uma cheia em Moçambique. Mais uma, anotou, distraído, o leitor, o ouvinte, o telespectador. Com aquela sobranceria com que se habituou a considerar normal tudo. Tragédia chega e parte, a ritmo alucinante. É a banalização da alegria, da dor, do diverso, do inesperado.
Ainda por cima em Moçambique, essa terra sofrida, ao longo dos tempos, sacrificada por cheias e outras intempéries.
De tal forma parecia óbvio e usual que amigo meu logo vituperou a nota no sítio de Belém e a mensagem ao Presidente Filipe Nyusi.
Um exagero! Como excessivo era esperar mais do que uma ajuda simbólica, dividindo a da União Europeia por vinte e sete ou vinte e oito. Como quem diz: para o ano haverá mais.
A mim fazia-me espécie essa indiferença, nascida da ignorância.
Pois quem sabe, hoje, nos mais novos — abaixo dos quarenta e cinco — onde fica a Beira, o que é Sofala e Manica e Tete, quem lá vive, o que lá se produz?
Até que, horas, um dia, dia e meio volvidos, as imagens irromperam devastadoras. A água sem fim. Os resistentes à esperada salvação, nos telhados. A área destruída. A comparação com a Península Ibérica. O número de deslocados. E de não localizáveis. E de mortos.
Irmandade. É isso mesmo. É essa a razão do fundo pesar que caiu sobre nós, todos. Os que conhecíamos e amávamos
E os que lá estiveram recordavam pedaços de vida. Antes e depois da independência. E os que privaram com moçambicanos cá, lembravam o olhar, o gesto, a resistência, a doçura do trato.
E os que nem lá viveram nem cá conheceram, sentiam naqueles testemunhos, falados na nossa língua comum, com referências, antigas ou próximas, comuns, mais do que a mera compaixão pelos que padecem.
A mim vieram-me ao espírito, em galope imparável, imagens da Beira, de Sofala, de Manica, de Tete, de Cahora Bassa. De 1968, 1969, 1970, dos anos 80 e 90, dos tempos nas aulas na Universidade Eduardo Mondlane.
A mim fazia-me espécie essa indiferença, nascida da ignorância. Pois quem sabe, hoje, nos mais novos — abaixo dos quarenta e cinco — onde fica a Beira, o que é Sofala e Manica e Tete, quem lá vive, o que lá se produz?
Com um irresistível sentido de Irmandade.
Irmandade. É isso mesmo. É essa a razão do fundo pesar que caiu sobre nós, todos. Os que conhecíamos e amávamos.
Os que nunca conheceram nem nunca conhecerão e, ainda assim, estão a aprender a amar.
Que razão tem Miguel Esteves Cardoso ao indignar-se contra a ideia peregrina daqueles, como o meu amigo, que achavam que era só dividir a ajuda europeia por vinte e sete ou vinte e oito para calcular o quinhão português. Como se pudéssemos não ter sempre presentes compatriotas nossos lá vivendo tão moçambicanos como os moçambicanos.
Como se não tivessem existido mais de quatrocentos anos de vida em conjunto, em que demos mas recebemos bem mais do que demos.
Daí a resposta inequívoca de povo e do poder em Portugal. A já dada e a que está ainda para o ser.
Os nossos irmãos moçambicanos, esperam, com razão, que nos não esqueçamos deles.