
Morreu hoje em Lisboa Aga Khan, fundador e presidente da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN), e líder dos muçulmanos xiitas ismailis, confirmou fonte oficial do imamat ismaili. Tinha 88 anos.
Aga Khan: O homem discreto, o líder carismático
Aga Khan, líder dos muçulmanos ismaelitas, viveu uma longa vida de homem discreto mas foi como príncipe e imam que se destacou, deixando uma das maiores agências de desenvolvimento do mundo que apoia dezenas de milhões de pessoas.
Aga Khan morreu hoje aos 88 anos, em Lisboa.
Shah Karim al Hussaini, príncipe Aga Khan, 49.º Imam hereditário dos muçulmanos ismaelitas, nasceu na Suíça, cresceu e estudou no Quénia e nos Estados Unidos, e tem ligações ao Canadá, Irão e França, e nos últimos anos também a Portugal, com a escolha de Lisboa para sede mundial da comunidade ismaelita, “Imamat Ismaili”, tornando-a uma referência para os cerca de 15 milhões de muçulmanos da minoria xiita.
Discreto, tido como uma das pessoas mais ricas do mundo, Aga Khan IV nasceu a 13 de dezembro de 1936 na Suíça, filho do príncipe Aly Khan e da princesa Tajuddawlah Aly Khan. Cresceu no Quénia, frequentou a Le Rosey School, na Suíça, durante nove anos, e licenciou-se depois em Harvard, nos Estados Unidos.
Era aí que estava, no primeiro ano de faculdade, quando o avô, doente, o convocou. Disse apenas “vem ver-me”, recordou numa entrevista há cerca de uma década à revista Vanity Fair.
Karim só voltaria a Harvard ano e meio depois mas já como o Imam hereditário (líder espiritual) dos muçulmanos xiitas ismailis, tornado Aga Khan IV, por vontade do avô, que na sua morte, em testamento, justificou a escolha do neto como seu sucessor com os novos tempos que um jovem entenderia melhor.
O salto de uma geração na liderança da comunidade nunca tinha acontecido. O sucessor natural seria Aly, que se tinha divorciado da mãe de Karim para se casar com a atriz norte-americana Rita Hayworth, de quem entretanto também já se divorciara.
Em 1957, com 20 anos e com responsabilidades para com 15 milhões de pessoas, Karim tornava-se Aga Khan IV mas também “Sua Alteza”, um título que a rainha Isabel II, de Inglaterra, lhe concedera entretanto. Mas também, dois anos depois, em 1959, o de “Sua Alteza Real”, concedido pelo Xá do Irão. O título de Aga Khan fora concedido pela primeira vez a Aga Hassanaly Shah, o 46.º Imam Ismaili, pelo Xá da Pérsia, na década de 1830.
Para os muçulmanos ismaelitas Aga Khan é descendente direto do profeta Maomé e como novo líder o jovem Karim passou meses a viajar para conhecer as comunidades espalhadas pelo mundo e voltando depois a Harvard para se formar em História Islâmica dois anos depois, em 1959.
Definiu-se como um “otimista mas cauteloso”, alguém que não sendo um homem de negócios aprendeu a sê-lo, que acreditou que a pobreza existe, mas não é inevitável. E nas palavras de amigos foi alguém que nunca bebeu nem fumou e que dedicou muito do seu tempo ao trabalho e a visitas à comunidade.
Duas vezes casado, teve quatro filhos (um deles deve ser o seu sucessor mas não Zahara, a única filha, porque mulher Imam “absolutamente não”), foi um apaixonado por esqui mas também por cavalos, e criou um império que vai da banca à hotelaria, que financia projetos de desenvolvimento social, incluindo em Portugal, onde existe desde 1983 a Fundação Aga Khan.
Numa entrevista ao jornal Público, em 2008, admitiu ter muito dinheiro embora não comparável com a fortuna de Bill Gates, e frisou que não era nem nunca seria um empresário.
E também não foi um líder mediático. “Somos uma comunidade discreta, é uma das nossas tradições”, disse na entrevista ao Público.
A comprová-lo, desde 2018, quando terminou em Lisboa as comemorações dos 60 anos como líder da comunidade ismaelita, poucas são as notícias centradas nele. A sua própria biografia oficial foca-se mais na obra e menos no homem.
Contudo, proliferaram as notícias relacionadas com a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN), em Portugal ou no estrangeiro, fosse na área da cultura, da moda e dos festivais, da educação, com apoio a universidades, do ambiente, a ajudar a preservação de sítios, da área social, da sustentabilidade ou da saúde.
Em 2019 ofereceu um robô cirúrgico a um hospital de Lisboa, a partir de 2020 apoiou em várias frentes a luta contra a covid-19. E enquanto comprava dois palácios, em Lisboa, para concentrar a sede mundial do “Imamat Ismaili”, apoiava imigrantes, projetos culturais, de saúde, a luta contra a desnutrição infantil, e de inclusão social.
Em março de 2023 um ataque ao Centro Ismaili em Lisboa também trouxe para a ribalta a comunidade, constituída em Portugal por mais de 8.000 pessoas, mas o príncipe manteve-se discreto.
Três meses depois assinalaria na capital portuguesa os 66 anos da sua liderança, falando da prioridade da AKDN: a proteção e melhoria das condições de vida dos mais pobres, fracos, vulneráveis.
Aga Khan criou também a Fundação Aga Khan em 1967, para acabar com a fome, a pobreza, a iliteracia e a doença em algumas regiões mais pobres do mundo. Foi a origem de uma das maiores redes privadas para o desenvolvimento do mundo, empregando 80.000 pessoas.
Um dos países apoiados é Portugal. Em março deste ano a Câmara de Castelo Branco entregou ao príncipe a medalha de ouro da cidade. Mas a homenagem foi só a mais recente, de uma lista que começou em 1960, quando foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
Aga Khan recebeu dezenas de condecorações em dezenas de países. Em Portugal, em 1998 recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Mérito, em 2005 a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e em 2017 a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
Foi doutorado honoris causa em mais de duas dezenas de universidades de todo o mundo, incluindo a Universidade de Évora, 2006, e Nova de Lisboa, em 2017. E recebeu as chaves da cidade de Lisboa (1996) e do Porto (2019), e a distinção de Correspondente Estrangeiro da Academia das Ciências de Lisboa (2009), o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa (2014). Em 2019 Portugal atribuiu-lhe a nacionalidade portuguesa.
Numa entrevista ao jornalista e historiador francês Henri Weil, em 2019, disse que não se considerava nem chefe de Estado nem príncipe mas sim um Imam de uma comunidade muçulmana xiita que existe há séculos. E um bom homem, porque esse é o papel de um Imam.
Educado, sorridente, simpático, mas discreto. “Acredito que, enquanto uma instituição muçulmana no Ocidente, posso ser mais eficaz se não estiver constantemente nas primeiras páginas. Não há razão para eu aparecer nas notícias. Quando existem problemas, tento resolvê-los discretamente. Nem sempre consigo, mas de um modo geral, a discrição tem-me sido útil”.
Na entrevista à Vanity Fair, em Aiglemont, uma propriedade perto de Chantilly (França), que foi o sítio onde passou mais tempo, Aga Khan falou da sua paixão pelos cavalos, aos quais se dedicou após a morte do pai, ainda que nada soubesse deles até então. “Harvard é uma grande instituição, mas não ensina sobre a criação de cavalos puro-sangue”.
De outras paixões, da sua vida pessoal, sempre foi parco em palavras. Casou em 1969 com Sally Crichton-Stuart com quem teve três filhos, Zahra, Rahim, e Hussain. Em 1995, três anos após se divorciar, casou com Gabriele zu Leiningen, com teve mais um filho, Aly, em 2000, mas acabou por se divorciar alguns anos depois.
Mas nunca foi, ao contrário do seu pai, uma pessoa social. “As festas não são o seu forte”, disse um amigo, citado na revista. Consensualmente era referido por amigos como alguém de porte que inspirava confiança, que se impunha com graciosidade, que educadamente fazia sempre prevalecer a sua vontade.
“Karim tem muito charme, mas por baixo é feito de aço. Ele faz exatamente o que quer, quando quer”, dizia um amigo citado na revista.
Que numa frase poderá ter resumido assim a vida de Aga Khan IV: “De facto, poucas pessoas ultrapassam tantas divisões – entre o espiritual e o material; o Oriente e o Ocidente; o muçulmano e o cristão – tão graciosamente como ele”.
O grande legado de um homem discreto

Aga Khan viveu uma vida discreta, mas deixou ao mundo uma das maiores redes privadas para o desenvolvimento, empregando mais de 80.000 pessoas e ajudando milhões em 30 países, incluindo Portugal.
No dia da morte do líder dos muçulmanos ismaelitas desaparece o homem que sempre fugiu das capas dos jornais, mas também o fundador e presidente de um império alicerçado na Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN, Aga Khan Development Network).
Trata-se de um grupo de agências privadas internacionais que procuram melhorar as condições de pessoas em várias regiões do mundo, com um orçamento anual, para atividades sem fins lucrativos, que ronda os 600 milhões de euros.
Os números oficiais indicam ainda que mais de dois milhões de alunos beneficiam dos programas anuais de educação, que em cada ano a AKDN, em colaboração com diferentes parceiros, providencia cuidados de saúde de qualidade a cinco milhões de pessoas.
São por ano oito milhões de consultas em ambulatório em mais de 700 unidades de saúde, são 2,3 milhões de crianças em idade pré-escolar apoiadas, e mais um milhão de alunos em 200 escolas e duas universidades.
Através da rede AKDN, em cada ano mais de 770.000 pessoas têm acesso a água potável, são fornecidos 1,8 mil milhões de kwh de eletricidade limpa, 50 milhões de pessoas têm acesso a serviços financeiros, 40.000 voluntários são formados e mais de 3,2 milhões de árvores são plantadas.
Sempre com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de pessoas mais desfavorecidas, a AKDN trabalha especialmente em países da Ásia e África, sem restrições de fé, origem ou género.
Os projetos podem ir de áreas como a saúde ou educação a melhoramentos dos ambientes naturais e construídos, em áreas urbanas ou rurais, a serviços financeiros ou oportunidades económicas, mas também às áreas culturais, como música tradicional, arquitetura e arte.
Em 1967, a AKDN criou a Fundação Aga Khan, uma agência internacional, a primeira de nove, focada em problemas de desenvolvimento específicos, que forma parcerias intelectuais e financeiras com organizações com os mesmos objetivos.
Tem como missão ajudar a encontrar soluções para problemas, especialmente na Ásia e em África, mas como fundação privada e sem fins lucrativos, com poucos trabalhadores, mas milhares de voluntários chega a populações necessitadas de todos os continentes.
Portugal é um dos países onde a Fundação está presente, além de ser o país escolhido por Aga Khan para sede do “Imamat Ismaili” (imamato ismaelita), a instituição, ou gabinete do imã dos muçulmanos, depois de ter assinado em junho de 2015 com o governo português um acordo para a sede formal e permanente do “Imamat”, em Lisboa.
Em Portugal, as atividades da Fundação têm-se centrado na educação de infância, no apoio à inclusão social e económica.
Mas abrange muito mais áreas, como a saúde, como a área da ciência, com um acordo de cooperação de 10 milhões de euros, ou a cultura, com o donativo de 200 mil euros para aquisição do quadro “A Adoração dos Magos”, de Domingos Sequeira, e o apoio para aquisição de outras obras de arte.
O trabalho da fundação no país passa também pelo apoio a imigrantes, pelos 500 mil euros de doação de Aga Khan para bolsas de estudo para crianças cujas famílias foram vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande (em 2017), ou pelos 100 mil euros para plantação de árvores na mata de Leiria. Ou pelo anúncio da criação de uma Academia Aga Khan, um projeto de ensino de mais de 80 milhões de euros.
A nível internacional, as nove agências de desenvolvimento da AKDN incluem áreas, além da saúde, ensino e a economia, como o habitat ou como a cultura, incluindo o Prémio Aga Khan para a Arquitetura, o Programa das Cidades Históricas, o Programa Aga Khan para a Música, o Museu Aga Khan e o Programa Aga Khan para a Arquitetura Islâmica (em Harvard e no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, MIT).
Os muçulmanos ismailis são uma comunidade global e multiétnica cujos membros, de diversas culturas, línguas e nacionalidades, vivem na Ásia Central e Meridional, Médio Oriente, África Subsaariana, Europa e América do Norte.
Aga Khan sucedeu ao seu avô, Sir Sultan Mahomed Shah Aga Khan, enquanto Imam dos muçulmanos xiitas ismailis em 1957, aos 20 anos.