« Nascer numa aldeia pobre e morrer em Paris » – opinião, Paulo Pisco

Paulo Pisco
Paulo Pisco, deputado e cabeça de lista PS pelo círculo da Europa

Nascer numa aldeia pobre e morrer em Paris

A emigração é um fenómeno que tem acompanhado Portugal ao longo de toda a sua História, é algo enraizado em todos nós, está entranhado na sociedade e, por isso mesmo, não pode haver um « nós » e um « eles », nem deixar que a passagem das fronteiras portuguesas possa apagar a nossa existência e história comum.

Altina Ribeiro, nascida em Chaves e a viver em Paris há mais de 50 anos, faz um relato surpreendente num livro de memórias de um emigrante que traça o seu percurso pessoal e familiar no tempo da ditadura e da pobreza, que é um espelho onde milhares de portugueses se podem rever. A emigração é a nossa história comum, que não podemos esquecer nunca e muito menos agora que preparamos as celebrações dos 50 Anos do 25 de Abril e o advento da liberdade e da democracia, do progresso económico e social.

É uma história de gerações que ganha dimensão a partir de uma aldeia muito pobre do Sabugal, onde uma família igualmente pobre tem uma filha, Maria José, que se torna professora em meados dos Anos 30, no período em que a autoridade do Estado Novo e da Igreja Católica estavam omnipresentes.

Ser professora era símbolo de respeito e importante estatuto social, tal como ser padre, médico, militar ou juiz. Mas a sua vida foi dura, obrigada a andar de aldeia em aldeia para dar aulas, por vezes com o filho nos braços, atravessando a pé terras pobres e pedregosas, a ter de ir buscar os alunos aos campos que os pais queriam na lavoura e não a aprender.

Para se ser professor era preciso ser leal ao regime de Salazar. Defendê-lo ativamente, professar os seus valores e fazer sacrifícios por eles, combater as atividades subversivas e o comunismo, que era o grande papão de Salazar. Por isso tinha de fazer parte da Legião Portuguesa, comprovado com o cartão, que a identificava como tal e expunha o catálogo de regras de obediência e submissão.

A professora, a quem carinhosamente chamavam Dona Zezinha, queria que o filho fosse padre e por isso mandou-o para o Seminário de Beja, mesmo contra a sua vontade. E aí o sistema de ensino era absurdamente repressivo, com uma pedagogia do castigo, da bofetada e da humilhação. Uma opressão pela religião e uma repressão por via da máquina do Estado e da sua polícia política, a PIDE.

O marido da professora, mesmo sendo oriundo da burguesia rural, foi o primeiro a emigrar para França no início dos anos sessenta, passando a fronteira a salto e sendo acolhido depois no conhecido bidonville de Champigny, onde viveu em condições miseráveis, até se mudar para um pequeno quarto mais próximo do centro de Paris. Depois partiu o filho, que a mãe, numa rara desobediência ao regime, mandou para França a pretexto de ir passar umas férias com o pai, quando na verdade queria evitar que fosse morrer na Guerra Colonial, transformando-o assim em desertor. Entretanto, as aldeias iam-se esvaziando e não voltaram a ganhar população.

Um pouco mais tarde é a mãe que vai para França, porque achava que o filho estava a tornar-se muito independente e subversivo. Na realidade, o filho estava a libertar-se da educação castradora que recebera e a gozar a liberdade que nunca teve na aldeia, nem nas escolas religiosas por onde passou. Como viviam num espaço muito apertado, Maria José torna-se porteira, para ter um salário e melhores condições. Para ela foi um choque, perder o seu estatuto de professora e deixar de ser a figura central como era na aldeia, para passar a ser a « Madame Arraújo« , a cuidar do prédio e dos caixotes do lixo. Mas adapta-se. Não tem outro remédio. O filho casa-se com uma francesa, deixa descendentes franco-portugueses e a vida vai seguindo o fio do tempo.

Entretanto, o pai já morrera em 1975 e depois Maria José falece em 2008, sem nunca ter deixado de ser porteira. Finalmente, é o filho Carlos que parte, em 2019. Saíram de uma aldeia portuguesa e ficarão para sempre em França.

Esta é uma história real e viva, relatada no livro Dona Zezinha, que transportamos na nossa identidade coletiva, com meio século de opressão, uma vida dura de sacrifícios que as gerações mais novas nem sequer imaginam. Mas é também uma história de superação, como é próprio da emigração portuguesa. E é esta história que os portugueses e os seus descendentes transportam ainda hoje, mesmo que já não tenham consciência disso. E será uma grande falha se não a soubermos honrar e integrar devidamente no nosso sistema de valores.

 

Deputado do PS

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