Entrevista exclusiva (EXPRESSO): “Sou o Rui Pinto, o ‘John’ dos Football Leaks, e sei que as autoridades portuguesas não querem investigar os crimes”. Depois de o seu advogado francês, William Bourdon, ter assumido na semana passada que Rui Pinto é “John” — o whistleblower por detrás de 70 milhões de documentos do Football Leaks —, o português deu uma entrevista à Der Spiegel, ao Mediapart e ao canal público alemão NRD no seu apartamento em Budapeste onde se encontra em prisão domiciliária, para responder às acusações de que é alvo em Portugal
É a primeira vez que Rui Pinto fala em público, assumindo desde já o seu papel como “John”, o whistleblower que está por detrás do Football Leaks e que forneceu mais de 70 milhões de documentos à Der Spiegel nos últimos três anos e que esta revista alemã partilhou com o consórcio de jornalismo EIC (European Investigative Collaborations), de que o Expresso faz parte. Esta é uma versão resumida de uma entrevista alargada feita em Budapeste pela Der Spiegel, em conjunto com o Mediapart e o NDR, e que será publicada este sábado na edição impressa do Expresso.
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Não me considero um hacker, mas um cidadão que agiu em nome do interesse público. A minha única intenção era revelar práticas ilícitas que afetam o mundo do futebol.
Pode dizer-nos como conseguiu obter mais de 70 milhões de documentos confidenciais e, nalguns casos, bastante delicados sobre a indústria internacional de futebol?
Iniciei um movimento espontâneo de revelações sobre a indústria do futebol. Não sou o único envolvido. Ao longo do tempo, mais e novas fontes de informação foram aparecendo e partilhando material comigo e a base de dados foi crescendo. Isto mostra que há muita gente preocupada com este assunto.
O mandado europeu emitido pelo Ministério Público português em seu nome e que levou à sua detenção há duas semanas acusa-o de cibercrime. Tem a ver com o Sporting e com a publicação de mails confidenciais em 2015. O que tem a dizer disso?
Estou pronto para explicar isso à autoridades judiciais quando for a altura certa, mas nego essa descrição das coisas.
Além disso, é acusado de utilizar informação privilegiada para chantagear a Doyen Sports no outono de 2015.
A única razão pela qual contactei a Doyen foi para confirmar a ilegalidade das suas ações, com base na quantidade de dinheiro que estivessem dispostos a pagar para que os documentos não fossem divulgados.
Isso não é um jogo. Parece chantagem.
Queria perceber o quão valiosos e o quão importantes eram os documentos para a Doyen. Achei que conseguia descobrir isso se soubesse o quanto a Doyen estava disposta a pagar pelo meu silêncio. Nunca foi minha intenção aceitar o dinheiro. Só queria expor a Doyen.
Até arranjou um advogado que ficou de arranjar um acordo para si. Ele encontrou-se com o diretor executivo da Doyen.
É verdade. Quis perceber quanto lhe ofereciam. Enquanto ele negociava, eu continuei a ler os documentos. Enquanto o fazia, dizia para mim mesmo: se os deixo comprarem-me agora, não valho mais que todos estes esquemas. Por isso escrevi à Doyen e disse-lhes para ficarem com o dinheiro. Não me pagaram um único cêntimo. O que fiz foi muito ingénuo. Olhando para trás, arrependo-me. Mas repito, nego ter cometido qualquer crime.
Foi divulgado que os investigadores em Portugal suspeitam que deu ao FC Porto e-mails incriminatórios do Benfica. A publicação desses documentos incendiou Portugal e mergulhou o Benfica numa crise. Teve alguma coisa a ver com isso?
Não li nenhuma declaração das autoridades sobre uma relação entre mim e o escândalo do Benfica. Uma revista publicou a história do Benfica no outono passado. Isso mudou a minha vida. A minha fotografia estava nas primeiras páginas dos jornais por todo o país. A minha conta de Facebook e o meu e-mail foram inundados com ameaças de morte.
Alguma vez ganhou dinheiro com o conhecimento que tinha dos crimes relacionados com a indústria do futebol?
Sei que esses rumores existem em Portugal. Para lhe dar uma resposta direta: não, nunca.
Recebeu ofertas para revelar os dados que possui?
Várias. Uma vez recebi um e-mail anónimo em que me era oferecido mais de meio milhão de euros. Recusei todas as ofertas, porque nunca agi com o propósito de ganhar dinheiro, mas sim com base no interesse público.
O advogado que negociou com a Doyen em seu nome em 2015 já o tinha representado antes numa disputa com o Caledonian Bank nas Ilhas Caimão. Os jornais portugueses dizem que roubou 300 mil dólares desse banco. É verdade?
No final, não recebi nenhum dinheiro desse banco. Não é que tenha roubado o dinheiro, essa não é a verdadeira história.
Qual é então a verdadeira história?
Não estou autorizado a falar sobre essas circunstâncias específicas porque assinei um contrato de confidencialidade com o banco. Uma coisa é certa: se tivesse cometido um crime, o banco ter-me-ia levado a tribunal. O caso nunca foi a tribunal e o meu registo criminal está limpo até hoje, em Portugal e em qualquer parte do mundo.
Por que é que comprou uma guerra com o Caledonian Bank?
Naquela altura, os bancos em Portugal estavam a falir; as pessoas perderam as suas poupanças de uma hora para a outra. Ao mesmo tempo, cada vez mais dinheiro desaparecia da Europa. Era claro que algo de errado se passava. Quis perceber melhor o que se passava. Quis perceber o sistema das offshore.
De onde tirou a ideia de, no outono de 2015, lançar o site Football Leaks?
Sou fanático por futebol desde criança e já tinha percebido, desde o Caso Bosman, que o futebol estava a caminhar na direção errada. Os melhores dos jogadores jovens estavam a ir para as melhores equipas; toda a competição estava a dar vantagem aos clubes de topo. O grande impulsionador para mim foi o escândalo da FIFA em 2015. Além de todas as detenções que foram feitas na FIFA, vi que havia irregularidades em muitas transferências dentro de Portugal. Que mais e mais investidores invadiam o mercado. Comecei a recolher dados.
Foi contactado por alguma autoridade depois de ter feito as primeiras revelações do Football Leaks em 2016?
Recebi alguns emails de autoridades fiscais, incluindo uma da Alemanha, de Munique.
Qual foi o seu comportamento nessa altura?
Alguns pedidos foram feitos à bruta. Os investigadores financeiros ingleses queriam saber o meu nome e onde vivia. Isto é de loucos para um whistleblower que quer manter-se anónimo; claro que não respondi. Na altura não tinha advogados. Precisava de tempo e de uma estratégia que garantisse a minha segurança. Naquela altura, o pedido mais credível veio de França.
Porque está a resistir à extradição para o seu país?
Tenho quase a certeza que não terei um julgamento justo em Portugal. O sistema judicial português não é inteiramente independente; existem muitos interesses escondidos. Claro que há procuradores e juízes que levam o seu trabalho a sério. Mas a máfia do futebol está em todo o lado. Querem passar a mensagem que ninguém se deve meter com eles.
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