Confinado ou desconfinado, o pobre lixa-se sempre
O confinamento foi uma tragédia para os mais pobres, por causa da economia; o desconfinamento está a ser uma tragédia para os mais pobres, por causa do vírus. Porque o problema nunca é a tragédia que bate no pobre, é a pobreza que lhe tira todas as defesas
Não é possível, sem o trabalho de sociólogos, comparar o aumento da covid-19 com a condição social dos infetados. Mas desde o início de maio que sabemos, por trabalhos da Escola Nacional de Saúde Pública, que os concelhos com maiores taxas de desemprego e maiores desigualdades de rendimento eram os que tinham mais casos de covid-19. Olhando para o que está a acontecer em Lisboa, percebemos que são os mais pobres que estão a sofrer mais com o desconfinamento. Os concelhos que registam maiores aumentos na região de Lisboa e Vale do Tejo foram Loures, Barreiro, Amadora, Moita, Seixal e Montijo. E não é por acaso que esta é a região mais massacrada. A caricatura irritantemente instalada de uma região privilegiada trata-a como uniforme. Só que Lisboa sofre o preço alto do centralismo, com periferias onde se concentra pobreza, precariedade e desigualdade, sobretudo entre os trabalhadores.
Os surtos na plataforma logística da Azambuja e no bairro degradado da Jamaica – é interessante a abissal diferença de comportamento das autoridades nas duas situações – mostram como há um país que esteve sempre em risco e que, com a pressão do regresso generalizado ao trabalho, levou a primeira pancada. Parece que os centros comerciais vão manter-se fechados. Não contesto, mas não deixo de achar graça que os momentos de lazer, e não as condições de trabalho e de transporte, sejam a única preocupação que sobra com os pobres. Assim como não deixa de ser revoltante haver quem julgue pessoas que vivem em barracas por não ficarem fechadas em “casa” ou ouvir a ministra da Saúde a responsabilizar os trabalhadores da plataforma logística pelo contágio.
Defendi o urgente regresso das atividades económicas porque também foram os mais pobres quem mais sofreu com o confinamento. O tal estudo do início de maio dizia-nos que um quarto das pessoas que ganham 650 euros mensais perdeu a totalidade do rendimento e isso só aconteceu a 6% dos que ganham mais de 2500 euros. Ao fim de um mês penso que a situação será muito mais dramática. E não é só o rendimento. São as crianças afastadas da escola e sem acesso a computadores e Internet ou casas sem condições para lá permanecer durante quase dois meses. O confinamento foi uma tragédia para os mais pobres, por causa da economia; o desconfinamento está a ser uma tragédia para os mais pobres, por causa do vírus.
É por isso que tenho recusado o absurdo combate de trincheiras que opõe “desconfinadores” e “confinadores”, corajosos e responsáveis. De um lado e do outro, ouvi absurdas certezas científicas sobre um vírus de que tão pouco se sabia. De um lado e do outro, se falou em nome dos pobres massacrados pelo desemprego ou pela pandemia. Defender a ponderação dos dois fatores sempre foi o menos sexy. Nunca garantirá a ninguém o estatuto de visionário, que percebeu a verdade antes de todos os outros. Mas parece-me que foi e continua a ser a única posição intelectualmente séria.
Quanto à pobreza, a questão é tragicamente mais simples. E resume-se assim: os pobres lixam-se sempre. Lixam-se confinados, lixam-se desconfinados. E é por isso que o problema não é o vírus inesperado ou o desconfinamento inevitável. O problema é a desigualdade. E essa não tem nada de inevitável. Se houver um terramoto quem se lixa mais são os mais pobres. E quando chega a reconstrução são os mais pobres que são expulsos da nova cidade. Numa sociedade desigual, a catástrofe lixa o mais pobre tanto como o lixa a solução. Porque o problema nunca é a tragédia que bate no pobre, é a pobreza que lhe tira todas as defesas para lidar com essa tragédia.
É por isso que defendo, desde o primeiro dia, que o critério do confinamento e do desconfinamento tinha de ser sanitário e social. E que enquanto continuarmos a ser uma das sociedades mais desiguais da Europa não seremos exemplo de nada. O que corra bem deixará sempre de fora demasiada gente. Os outros, o país que se trama, são os moradores do Bairro da Jamaica ou os trabalhadores da Plataforma Logística da Azambuja. E, para tornar tudo um pouco mais chocante, uns e outros ainda são apontados como responsáveis pelo seu próprio infortúnio.