O 25 de Abril mais estranho de sempre. AR comemora só com 46 deputados. Reportagem/Expresso

Descer a avenida… mas à janela. Hoje, o 25 de Abril não desce a Avenida da Liberdade. Pela primeira vez, a festa da revolução faz-se à janela. Memórias de quem tem lugar cativo

João Paralta, o homem que costuma conduzir a chaimite na avenida, sente este ano “um vazio” com a viatura parada <span class="creditofoto">FOTO TIAGO MIRANDA</span>

João Paralta, o homem que costuma conduzir a chaimite na avenida, sente este ano “um vazio” com a viatura parada FOTO TIAGO MIRANDA

Alfa – Uma reportagem do Expresso por ANA SOFIA FONSECA

O almoço tem de estar pronto cedo. É comer, lavar a louça e “ala que se faz tarde”. Todos os anos, a mesma história. É certo e sabido que, às três da tarde, o Marquês de Pombal é um cravo sorridente. Vem gente de toda a parte, uns de longe, outros de perto. Excursões, grupos de amigos, velhos e novos. Carolina Fontela sabe de cor a rotina do calendário. Tem 19 anos, desde pequena que 25 de Abril tem endereço certo: Avenida da Liberdade, Lisboa. Este ano, a vida em suspenso. Gente aos magotes não rima com estado de emergência e a Associação 25 de Abril não convocou o tradicional desfile popular. A estudante de Direito anda a habituar-se à ideia: “Parece que estamos a viver, ao mesmo tempo, um filme a preto e branco e um de ficção científica. Não temos liberdade para ir para a rua, mas por causa de um vírus.”

Não fosse a pandemia e Carolina havia de levar a tarde inteira com a avó. Ainda a louça a pingar e já elas na avenida: “Para a minha avó, é o dia mais importante do ano.” Da vida inteira. Foi há 46 anos que, um acaso do destino, a fez saltar para a História. Passava do meio-dia quando Celeste Caeiro se tornou Celeste dos Cravos. A mulher que deu nome à revolução que, numa madrugada, derrubou mais de quatro décadas de ditadura. A neta não esconde orgulhos: “Foi ela quem começou a distribuir cravos brancos e vermelhos pelos soldados. Na escola, quando dávamos o 25 de Abril, havia sempre uma fotografia da minha avó nos livros.” Cresceu a percorrer a avenida ao seu lado, uma multidão a querer “uma fotografia com a Celeste”.

Carolina, neta da florista Celeste, que ofereceu os cravos aos soldados, também vai comemorar à janela

Descer a Avenida da Liberdade faz parte das comemorações do 25 de Abril há quatro décadas. Até então, na capital, a revolução era assinalada com uma sessão solene na Assembleia da República e uma parada militar. Por vezes, festa no Parque Eduardo VII. Na primeira página, “O Diário de Lisboa” de 27 de abril de 1981 dá conta da estreia: “Raras vezes a cidade de Lisboa terá visto uma tal multidão a desfilar pela Avenida da Liberdade.” De lá para cá, este é o primeiro ano sem engarrafamento de gente. Vasco Lourenço, um dos capitães de abril, tem lugar certo na primeira linha de marchantes: “Tirando dois anos em que a dor nos joelhos me obrigou a juntar-me à festa apenas no Rossio, desci sempre a avenida. É uma jornada que marca o dia e o ano das pessoas. Desta feita, teremos de celebrar de outra forma.” À janela, que é onde o confinamento mais nos aproxima da rua.

O presidente da Associação 25 de Abril prossegue: “Convidamos todas as pessoas para irem à janela cantar ‘Grândola Vila Morena’.” Às 15 horas, a canção de Zeca Afonso há de arrepiá-lo como há 46 anos, naquela noite em que a música teve honras de senha. Mal os primeiros acordes soaram na rádio, o capitão de infantaria teve a certeza de que já nada podia deter o golpe em marcha. Há muito que empenhava a vida na conspiração e o regime tanto o trazia debaixo de olho que, dias antes, havia-o despachado para os Açores. Tantas reuniões e, no momento decisivo, a um oceano de distância do posto de comando do Movimento das Forças Armadas.

CHAIMITE PARADA

Avenida abaixo, Carolina perde sempre a conta a quantos abraços a avó soma. O rosto da miúda faz lembrar Celeste, no retrato que tirou aos 20 anos, quando abandonou o orfanato onde cresceu. Ficou-lhe o gosto pela fotografia. João Paralta já a viu posar junto à chaimite. Terá até recebido um cravo das suas mãos. Desde que a viatura de guerra alinha no desfile, é ele o condutor. Tinha 14 anos quando a mãe, na esperança de o livrar da guerra colonial, lhe arranjou serviço nas oficinas do Exército. Quem diria que, em tempos de paz, seria ele o homem da chaimite? A descer a avenida, “acontecem histórias para o ano”. Uma vez, o carro avariou ainda no Marquês de Pombal. O desfile inteiro a suar nervos e a encher, “com uma garrafinha”, o depósito da bomba de travões. Hoje, lamenta a sorte: “Está a chegar o dia e eu aqui parado, já devia estar a tratar do carro.” Suspira. “Um homem reclama que é sempre a mesma coisa, mas a verdade é que é uma tristeza ser diferente. Este ano há um vazio.” Também Carolina sente o rombo no calendário, mas guarda certezas: “Mesmo longe da avenida, temos de comemorar. Estamos confinados em casa, mas podemos falar à-vontade. Eu estou na faculdade. Antes do 25 de Abril, não poderia estudar para ser juíza.” Sabe bem do que fala, a avó bem amargou os usos da ditadura. Filha de pai desconhecido, foi mãe solteira, “foi malvista”. Na avenida, é estrela.

FALTAS POR TRABALHO, CASAMENTO… E COVID-19

Quem também não falha a avenida é Pedro Vieira. Começou a participar na juventude e depressa caiu de amores. Aos 44 anos, o escritor e guionista não tem dúvidas: “Para mim, é o dia mais feliz do ano. É o meu Natal.” Os pais nunca alinharam na política, mas sempre lhe mostraram quanto a revolução dos cravos havia mudado o seu mundo. Conheceram bem a cartilha da maioria dos filhos do Estado Novo — de barriga vazia, cedo os bancos da escola trocados pelas lides do trabalho. O golpe dos capitães garantia aos filhos outra leveza, melhor futuro. “Tenho muita consciência do valor da liberdade e de quanto quem sou se deve a essa data.”

Na memória, guarda apenas duas ausências na avenida. A primeira há mais de dez anos, quando não conseguiu folga na livraria onde trabalhava. Manhã cedo, antes de pegar ao serviço, atravessou a avenida sozinho. No silêncio, o significado da data à flor da pele. A segunda foi há seis anos para trocar alianças de cravo na lapela. Casou no dia em que a revolução celebrou 40 anos. Alguns convidados chegaram afogueados à cerimónia, ainda embalados pelo “ambiente” da avenida.

Este ano será a terceira vez que não pisa a avenida. Nem pólen a despertar alergias nem abraços nem um copo de Ginginha a fechar a tarde, no Rossio. “A avenida não se desce por uma excecionalidade enorme e impensável, por isso, é mais fácil aceitar a frustração. Para o ano, sem pandemia, regressaremos com alegria redobrada.” Hoje, em cada janela, cabe a avenida inteira.

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