Para os portugueses no Reino Unido, « ir ao consulado é um martírio »

(Por FILIPA ALMEIDA MENDES do jornal Público)

Renovar um passaporte ou registar um filho em Londres é uma aventura burocrática marcada por longas esperas, chamadas que não são atendidas e emails que não são respondidos. Muitos são forçados a vir a Portugal tratar dos seus assuntos.

« Devido ao elevado número de chamadas, a sua chamada encontra-se em lista de espera ». Quem telefona para o Consulado Geral de Portugal em Londres é imediatamente avisado da falta de capacidade de resposta dos serviços. Depois de mais de 25 minutos em linha de espera, a chamada do PÚBLICO ficou por atender, assim como têm ficado várias outras chamadas e pedidos da comunidade portuguesa a viver no Reino Unido.

Segundo dados do Observatório da Emigração do ISCTE, em 2017 havia aproximadamente 235 mil portugueses a residir no Reino Unido. Nesse mesmo ano, o número de actos consulares chegou quase aos 70 mil, de acordo com dados mais recentes disponibilizados na página do Consulado de Portugal em Londres.

São números tão grandes quanto numerosas são queixas dos cidadãos portugueses sobre o funcionamento do consulado português em Londres, entre atrasos na resposta a pedidos de renovação do passaporte e do cartão de cidadão, registos de nascimento ou casamento, a mera inscrição na representação diplomática ou o exercício do direito de voto, o que em alguns casos obriga a viagens de urgência a Portugal.

Questionada pelo PÚBLICO sobre as críticas ao funcionamento destes serviços no Reino Unido, a Secretaria de Estado das Comunidades disse apenas que o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, vão apresentar nesta sexta-feira « medidas de preparação e contingência dirigidas aos cidadãos, relacionadas com a saída do Reino Unido da União Europeia ». Ainda assim, alguns portugueses a residir no Reino Unido, com que o PÚBLICO falou, garantem que o « Brexit » não tem « culpa no cartório » e que esta é uma realidade que já dura há algum tempo.

« É melhor ir a Portugal fazer os documentos »

Na Internet, as reclamações chegam às dezenas. Os motivos são vários, desde o tempo de espera à impossibilidade de agendar uma marcação no site do consulado, ou até mesmo pela « maneira como falam com as pessoas ». Para muitos, a solução tem passado por viajar até Portugal, com todos os custos que isso acarreta, para garantir que os documentos fiquem em ordem no próprio dia.

Foi o caso de uma residente portuguesa, a viver em Londres há mais de 12 anos, cujo passaporte caducava em Janeiro e que, após dois meses de tentativas infrutíferas para agendar uma marcação no consulado em Londres e com a paciência esgotada, marcou viagem para o aeroporto de Lisboa, na próxima segunda-feira, para renovar o passaporte.

« Vou ter que ir a Portugal fazer um passaporte porque o meu trabalho envolve muitas viagens e tudo isso vai-me custar à volta de 300 euros entre transportes, voos, a emissão urgente do passaporte [que custa 100€] e ainda se tiver que alugar um hotel », nota ao PÚBLICO uma cidadã portuguesa que prefere não ser identificada (chamemos-lhe Joana), garantindo que este procedimento « agora é regra ».

« Eu tenho a possibilidade de ir a Portugal e de o pagar, mas pode haver gente que não consiga. Como é que isto é suposto ser a regra? », questiona.

Por vezes, é o próprio consulado que aconselha os cidadãos residentes no Reino Unido a ir a Portugal resolver os seus problemas. Foi o caso de Maria Inês Pinheiro, que trabalha na editora Penguin Random House e vive na capital britânica há cinco anos. Foi assaltada, tendo perdido os seus documentos. Após procurar auxílio junto do consulado português, em Agosto de 2018, um funcionário respondeu-lhe que « era melhor ir a Portugal fazer os documentos ».

Um sistema « arcaico » e um incentivo à « cunha »

O problema mais frequentemente referido entre os portugueses ouvidos pelo PÚBLICO é a dificuldade na marcação de idas ao consulado.

Os agendamentos são feitos actualmente através de um sistema online, que todos os dias às 16h disponibiliza 100 vagas de atendimento. E todos os dias às 16h o sistema acaba por entupir ou « as vagas esgotam num curto espaço de tempo », como admite o próprio consulado no site, causando frustração aos utilizadores.

« Isto tem sido a minha vida todos os dias. Às 15h45 tenho um alarme no telemóvel, meto-me à frente do computador e estou sempre ali a recarregar a página e, depois, o site vai abaixo », conta Joana. « Entretanto, uma pessoa liga e ninguém atende, até porque a partir das 16h o consulado já está fechado. Ligo no dia seguinte e fico em lista de espera. O sistema é assim », lamenta a portuguesa a viver em Londres. « Tal é o desespero », conta a cidadã lusa, que « existem até pessoas a publicarem na Internet o seu número do passaporte para obterem ajuda ».

Outros admitem ter de recorrer a outros expedientes perante as dificuldades desta plataforma online. É o caso de Nuno Valinhas, que diz ter tido problemas aquando do registo dos seus filhos e da renovação de cartões do cidadão. « Numa das três vezes que tive de contactar o consulado acabei por desbloquear a situação com uma tradicional cunha », assume.

No próprio posto consular, e para serviços que não exigem marcação prévia, há portugueses que ficam horas à espera de atendimento, muitos destes oriundos de cidades e regiões distantes de Londres. A ansiedade aumenta à medida que se aproxima o « Brexit », com portugueses contactados pelo PÚBLICO a admitirem recear não ter os seus documentos em dia no momento em que o Reino Unido abandonar oficialmente a União Europeia.

« Sadiq Khan está mais preocupado com os portugueses do que o consulado »

Foi precisamente com o « Brexit » em mente que Afonso Carrêlo deslocou-se há um ano ao consulado português, por precaução, para se inscrever junto da representação diplomática. Até hoje não sabe se a sua inscrição está efectivamente concluída. No consulado não lhe disseram quando e como iriam informá-lo, fazendo saber que « não enviam emails e os documentos são processados à mão », como conta ao PÚBLICO.

Por outro lado, quando se inscreveu no site da câmara municipal de Londres para receber informações sobre o « Brexit », diz ter recebido « imediatamente » um e-mail automático onde Sadiq Khan, o mayor da capital britânica, se compromete a defender « os direitos do milhão de europeus londrinos a viver na cidade ». « Sadiq Khan está mais preocupado com os portugueses que por aqui andam do que o nosso consulado », diz ao PÚBLICO.

O problema do consulado está num « sistema online arcaico que nunca funcionou », afirma Márcio Silva, consultor informático a viver no Reino Unido há 11 anos. O português é outro que já teve de vir a Lisboa para renovar o passaporte no próprio dia, para poder realizar uma viagem de trabalho aos Estados Unidos. Já a sua mulher, Margarida Santos, « depois de ter sido avisada sobre a demora para agendar marcações », teve de telefonar para o consulado para marcar o registo de nascimento do filho do casal quando ainda estava grávida.

« O consulado em Londres está completamente pelas costuras », diz Margarida, que descreve cada ida ao posto consular como « um martírio ».

Processos que voltam à estaca zero e problemas na hora de votar

Já João Neves e a mulher, ambos portugueses, não tiveram outra solução senão deslocarem-se repetidas vezes ao consulado aquando do nascimento da sua filha. Isto porque o registo da menina implicou a apresentação de inúmeros documentos, entre registos de casamento e de dissolução de um matrimónio anterior. Para cada papel, um agendamento, num processo que se prolongou no tempo e que ameaçou voltar à estaca zero: numa das idas ao consulado, foi-lhes dito que não havia qualquer informação sobre o seu processo — valeu-lhes a boa memória de uma funcionária que os reconheceu e que assumiu a responsabilidade pelo seu caso.

« Se não fosse a senhora reconhecer-nos, não havia qualquer historial e provavelmente a nossa situação seria considerada irresolúvel », conta Neves, que responsabiliza a « falta de pessoal » e « falhas organizacionais ».

Carolina Santos, que se mudou para o Reino Unido em 2015, ano das últimas eleições legislativas, queixa-se de ter sido impedida de votar no consulado, apesar de se ter inscrito na representação diplomática logo no dia após a sua chegada a Londres. Após três horas à espera para exercer o seu direito, foi-lhe apenas dito que não o poderia fazer. « Foram extremamente rudes e nunca me foi explicado por que razão não me foi autorizado votar », diz.

« Até hoje, não voltei lá e evitarei fazê-lo porque foi o consulado do meu país que me negou um direito básico sem justificação », conta ao PÚBLICO.

Alfa/Público

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