Um cartão amarelo ao desconfinamento acelerado – editorial do Público

DITORIAL 

Um cartão amarelo ao desconfinamento acelerado

Os surtos que hoje afligem Lisboa não bastam para que se ponha tudo em causa. Mas servem como uma espécie de cartão amarelo. Para nós e, principalmente, para o primeiro-ministro e o Presidente

Editorial/Público . Por Manuel Carvalho. Leia versão original em publico.pt

Comecemos pelo lado que as autoridades de saúde e o Governo se esforçam por nos oferecer: os dados das infecções da covid-19 na região da Grande Lisboa não são “alarmantes”; revelam a existência de focos já identificados e associados a condições de vida deploráveis; já se sabia, porque quer o primeiro-ministro, quer a DGS, quer a ministra da Saúde não se cansaram de o repetir, que havia uma forte probabilidade de se verificarem novos surtos com o fim do confinamento; as autoridades estão atentas ao problema, já reagiram (mandando, por exemplo, encerrar cafés no Bairro da Jamaica) e, como também foi admitido, podem dar um passo atrás nos planos de desconfinamento.

Agora vamos à realidade dos factos: o que está a acontecer na Grande Lisboa começou a esboçar-se nos primeiros dias de Maio; depois do dia 9 de Maio, a tendência acentuou-se e a região da capital passou a ser o único problema sério da covid-19 em Portugal; essa tendência fez com que, desde esse dia até esta quinta-feira, dos 4190 casos de novas infecções registados no país, 3154 tivessem sido contados na Grande Lisboa. Pode não haver causa para alarme. Mas há razões para alerta. E, sobretudo, motivos para reflexão.

Teria de ser assim? Provavelmente seria inevitável. O vírus propaga-se mais facilmente nas grandes cidades, onde as pessoas têm de se deslocar em transportes públicos, onde as condições de vida nas periferias potenciam o contágio. Mas nas duas últimas semanas era impossível não constatar um problema, que expusemos em editorial esta semana ao analisar a multidão nas praias da Caparica: “Ou vivemos excessivamente confinados até há duas semanas, mostrando cuidados e receios que não se justificavam; ou estamos a expor-nos excessivamente aos riscos que continuam no ar. Entre o primeiro e o segundo momento, há uma óbvia falta de coerência e de senso.”

Os surtos que hoje afligem Lisboa não bastam para que se ponha tudo em causa, do inevitável desconfinamento à competência e capacidade das autoridades sanitárias para os controlarem. Mas servem como uma espécie de cartão amarelo. Para nós e, principalmente, para o primeiro-ministro e o Presidente. Ainda é muito cedo e a situação é ainda demasiado incerta para que possam ir à praia, sugerindo aos cidadãos a existência de uma normalidade tão falsa como perigosa. Uma coisa é a necessidade imperiosa de reabrir a economia, que obriga milhões de portugueses a correrem riscos para ir trabalhar; outra coisa, completamente diferente, é sugerir que podem dispor gratuitamente dos seus tempos livres, como se o perigo tivesse passado. Não passou. A situação de Lisboa está aí para o provar.

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